Trilogia de Lucas Belvaux (Acordo
Quebrado; Em Fuga; Um Casal Admirável - França, 2002)
por Cléber Eduardo
Desmistificando
o truque
É necessário desmistificar o efeito narrativo
e a lógica conceitual empregados pela trilogia do diretor belga
Lucas Belvaux. Elegendo os coadjuvantes principais de Acordo
Quebrado, filme elo do projeto, à condição de protagonistas
dos outros dois (Um Casal Admirável e Em Fuga),
Belvaux cria um mosaico de ações simultâneas em um mesmo espaço
– uma cidade na fronteira entre a Itália e a França. Todo o jogo
geométrico do roteiro consiste em empregar umas tantas situações
que, dependendo do filme, aparece de uma forma diferente ou sob
outro ponto de vista. Em outras palavras, a meta de Belvaux, na
prática, é capturar a simultaneidade das ações, mostrando que,
enquanto em um filme acontecia aquilo, nesse outro está acontecendo
isso. Se a característica fundadora da montagem e da narrativa
no início do século XX são as ações paralelas, portanto, novidade
nenhuma, a não ser pelo inusitado – esta ser aqui obtida na soma
de três filmes mais ou menos autônomos. Como princípio e conseqüência,
tem algo de truque mercadológico
Se a legitimação do projeto reside na quebra de
hierarquia entre tipos principais e secundários, igualando seus
dramas em importância no conjunto das três obras, a hierarquia
permanece na organização de cada uma das obras isoladamente. Cabe
ainda destacar os efeitos da estratégia para o significado dos
personagens, que, quando secundários, tornam-se alvos em potencial
de julgamentos morais, exatamente porque aparecem descontextualizados,
sem informações que os relativizem, quase como pretexto para depois
reaparecem em outras bases num dos outros dois filmes. Para afirmar
seu conceito supostamente humanista, Belvaux queima a imagem de
suas criações, apenas para depois mostrar como as aparências primeiras
enganam. Seu objetivo só se cumpre, no entanto, se o espectador
vir os três filmes.
Acordo Quebrado é o filme-núcleo do projeto. Temos como protagonista um casal de composição
singular: uma professora e um policial. Ela logo é reduzida à
condição de viciada em morfina. Ele tenta arrumar a droga para
ela, lida com a chantagem de um traficante, investiga o paradeiro
de um fugitivo e faz serviço particular para a amiga da esposa:
segue seu marido, suspeito de adultério. Embora seus personagens
estejam em situações limítrofes (seja correndo de um lado para
outro, no caso do policial; seja perdendo controle sobre a percepção,
a professora), o filme, mesmo empenhado em manter um ritmo dinâmico,
não reproduz em seus enquadramentos e cortes a alta voltagem das
experiências. As situações mostradas têm uma intensidade e a dinâmica
visual tem outra.
Um Casal Admirável pega o caso do marido investigado pelo policial como centro de sua ação.
Sua chave é a da comédia de costumes e da trama investigativa,
mas repete a mesma piada sobre os equívocos de percepção de marido
e esposa, que dão, a uma série de situações, significados disparatados.
O humor é extraído de um sistema mútuo de vigilância, que leva
cada uma das partes a ser constantemente suspeita aos olhos da
outra. Para reproduzir o sentimento de paranóia, a narrativa dá
alguns saltos, valorizando elipses e nos escondendo algo, de modo
a manter o potencial de desconfiança ali explorado.
Em Fuga larga
com razoável vantagem em relação aos outros. Logo em seus primeiros
minutos, enquanto acompanhamos a fuga de um presidiário, sua falsificação
de documentos e de sua própria aparência, somos apresentados a
uma narrativa que, apesar do título em português e do constante
deslocamento, valoriza o tempo e não só a ação. Isso significa
que, nos intervalos das idas e vindas do protagonista, a câmera
o observa, em vez apenas de narrar seus feitos. Também se percebe
aqui, ao contrário dos outros dois, um investimento na imagem,
com poucos diálogos em cena. Isso resulta em um filme que, em
vez de ser apenas ilustração de roteiro, encontra sua pulsação
interna, sem a qual, convenhamos, não existe personalidade cinemática.
Em Fuga ambiciona ser cinema, não apenas descrição de história.
Se em Acordo Quebrado e Um Casal Admirável
vemos ambientes de classe média em crise, primeiro com a relação
do policial (patrulhador) e da professora (educadora) com o crime
e com as drogas, depois com a desconfiança aguda instalada entre
um casal (ela professora, ele empresário), Em Fuga escancara
a má consciência desse segmento social. Seu personagem central
é um ex-militante político, de esquerda proletária, que sai da
cadeia para um acerto de contas tardio. Sua presença explicita
a falência de um ideal burguês de equilíbrio.
Não há uma homogeneidade de sentidos na soma dos
desfechos. Acordo Quebrado abre as portas para uma continuidade
em outras bases – embora, pelo visto no filme, as promessas feitas
no final supostamente esperançoso possam ser pura balela.
Um Casal Admirável é mais cínico e cético, com sinais
de um prolongamento da paranóia. Em Fuga tem o final mais
cruel, sádico até, pois puxa o tapete do personagem, justamente
quando ele parece ter enfrentado todas os obstáculos para resistir
à sua caçada. No entanto, seguindo uma lógica que vai contra o
personagem, decreta-se seu fim, responsabilizando o destino e
a natureza (os deuses da tragédia?) por seu fracasso.
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