in loco - cobertura dos festivais

Traquinagens (Sztuczki),
de Andrzej Jakimowski (Polônia, 2007)
por Paulo Santos Lima

Para os mais crescidinhos também

Um olhar tarado paira sobre Traquinagens. Não por parte do protagonista, o menino Stefek (Damian Ul); tampouco de alguém adulto para o pequeno espoletinha. Esse voyeurismo está circunscrito entre os crescidinhos do filme. Homens babões escaneando sem qualquer freio as superfícies-fêmeas, como a dessa moça da foto acima. Ela é Elka (Ewelina Walendziak), irmã de Stefek. Com pernas à mostra, sempre. Mas seria injusto delimitar o apetite às carnes e geometrias femininas apenas entre os personagens. Parece claro que o diretor, Andrzej Jakimowski, é quem faz questão de colocar pelo menos uma trinca de beldades e ainda escalar para o papel da mãe de Elka e Stefek uma mulher que não deixa a peteca cair, fazendo frente à filha.

Pode-se, a partir disso, discutir a ética do cineasta, criticar sua falta de “decoro” ao filmar corpos com certa volúpia num filme infanto-juvenil, mas o que fica na tela é bastante sutil para olhares infantes. Talvez nós, com olhos alertas para outros elementos em cena, tomamos o par de pernas de Elka ou o colo farto da vizinha Violka (Joanna Liszowska, atriz que vem atendendo pelo papel de bonitona num punhado filmes poloneses recentes) como ameaças aos bons costumes direcionados ao universo infanto-juvenil que o filme promete. O resultado é mais cândido, ainda que não livre de alguns abalos interessantes. Abalos que não arruínam a estrutura, que segue como filme “sessão da tarde”, inclusive com a própria Elka, mesmo com corpo à luz do dia e da câmera, assumindo-se criança em vários momentos, armando jogos para testar o quanto podem influir nos acontecimentos daquela pequena cidade polonesa.

Assim, tarado ou não, Jakimowski adota uma cartilha comportada para tratar da história de Stefek cismando que um executivo é o pai que os largou tempos atrás e armando uma série de truques para atrair o desconhecido. Essas iscas são de uma bela simplicidade (como jogar moedas nos trilhos para o trem atrasar e o suposto pai mais tempo na estação ficar), algo raro hoje, mesmo no cinema infanto-juvenil. Essa simplicidade aproxima Traquinagens dos contos infantis clássicos, como os de Mark Twain ou Jonathan Swift, sobretudo na adoção de uma fotografia de cores suavizadas como as gravuras dos livros (algo quase Beatrix Potter). A transparência clássica, por sua vez, coaduna-se com uma fluência bastante livre, em que as coisas simplesmente acontecem, sem grandes estardalhaços dramáticos. Sem problematizações, com os entraves sempre sendo dissolvidos ao longo da projeção – como Elka tentando uma entrevista de emprego ingloriamente e o patrão que lhe crescia os olhos jamais chegar nela ou como o namorado dela negociando com um turco mal-encarado a compra de um Dodge para então descobrirmos que ele é um cara legal à beça.

Essa liberdade faz bem para a naturalização de certos itens presentes na tela – o principal deles é a relação câmera-corpo das atrizes com o contracampo no elenco masculino (e também lançado à platéia). Mas pela fluidez, o que se estabelece é um olhar mais amadurecido, puro porém sagaz, como o do protagonista mirim. Stefek, aliás, é quem ilustra esse posicionamento. Criança de tudo, o molequinho consegue capturar de forma madura a dinâmica do seu mundo: além do trânsito férreo que ele usa em favor próprio, deleita-se a prazeres da vida como tomar banho de sol encostadinho na vizinha Violka, ou mesmo assistir ao namorado da irmã Elka pegando safadamente na mão dela e na de Violka, no mesmo banho de sol, e manter o sábio silêncio com um sorriso matreiro.

Stefek é a criança dos anos 2000, certamente. Traquinagens, talvez por seu diretor, é um filme anos 2000, também, na medida em que fica no meio do caminho entre o singelo e o maldoso, que veste a capa de santo para esconder um diabinho, que adota um visual dos contos infantis para deixar à vista algumas pernas e decotes mais a ver com os nossos tempos, que parte de um modelo consagrado e seguro para deixar a forma um tanto mais livre. O resultado é bastante estimulante.

Outubro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta