Tropa de Elite, de José Padilha (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente

Na terceira pessoa do documental

Se é fato que devemos sempre tentar analisar um filme por aquilo que ele nos diz na tela, e não pelo que os responsáveis pela sua realização dizem que o filme é, não deixa de ser bastante útil contar uma anedota externa a Tropa de Elite, uma vez que ela ajuda a entender melhor aquilo que vemos na tela. Há dois anos, num debate sobre Ônibus 174 em Paris, José Padilha disse que o projeto de Tropa de Elite tinha nascido como um documentário – mas que se tornara uma de ficção pelo simples fato dele haver percebido que, como documentário, o filme seria o projeto póstumo de um diretor. A anedota acima é importante porque revela o impulso primeiro que ainda hoje sentimos na tela em Tropa de Elite: documentar – mesmo que esta documentação se dê pela estrutura de uma ficção (ficção que é, toda ela, baseada no relato de dois ex-policiais do Bope). Compreender este impulso básico de Tropa de Elite é importante para que possamos ver tanto suas potencialidades quanto suas limitações.

Se optamos aqui começar pelas últimas é menos porque elas sejam predominantes, e muito mais porque elas são mais fáceis de detectar. A começar pelo fato de que o filme deixa claro que, como encenador de ficção, falta a José Padilha um olhar pessoal. Não por acaso ele vai buscar Bráulio Mantovani e Daniel Rezende, respectivamente roteirista e montador responsáveis por Cidade de Deus; não por acaso ele vai trabalhar com Fátima Toledo na preparação de atores; não por acaso Lula Carvalho reproduz na câmera os procedimentos de registro já discutidos no texto sobre Cidade dos Homens: desta maneira, Padilha faz um dever de casa básico e monta toda a estrutura que tem dado o formato do cinema “realista de favela” pós-CDD. Nada de novo, portanto, na maneira de filmar.

Se Tropa de Elite utiliza o modelo aristotélico dos três atos como qualquer ficção, talvez seja mais útil pensá-las aqui como as partes de uma tese de doutorado (com direito até a epígrafe na abertura do filme): introdução, desenvolvimento e conclusão. É por isso, por exemplo, que o filme passa quase 40 minutos de sua duração precisando explicar as entranhas daquilo que ele chama de “o sistema”: expor exemplos, procurar causas, apontar equívocos, e usar os personagens como “estudos de caso”. Se, sem sombra de dúvida, é aonde o filme resulta menos bem sucedido como “obra de ficção”, ao mesmo tempo é questionável chamá-lo de mal resolvido se continuamos tendo em mente que talvez a ficção seja o que menos interesse a Padilha. Na sua (embora talvez fosse mais adequado dividir a autoria com Rodrigo Pimentel, principal “mentor” do roteiro e do filme) exposição de tese sobre a situação da violência urbana carioca, esta, afinal, é a fase da introdução – e, como sabemos, ela é importante em qualquer tese. Ali, a voz em off de Wagner Moura, ainda que bem narrada (e essencial para o projeto por motivos que discutimos abaixo), se torna absolutamente didática, expositiva.

Quando termina a exposição e parte para o desenvolvimento (ou seja, quando a cena que abre o filme volta, encerrando o longo flashback que levou-nos até ela), Tropa de Elite se torna mais pungente como produto ficcional, por um motivo bem simples: se estamos já um tanto acostumados ao retrato da polícia corrupta ou do universo dos traficantes no audiovisual brasileiro (seja na ficção ou na reportagem), é quando se volta diretamente para o dia a dia do BOPE que o filme nos apresenta um dado novo, uma perspectiva até então desconhecida e secreta – como secretos são os rituais dessa “seita” que é a chamada “tropa de elite”. Não por acaso é ali que efetivamente o título do filme se junta ao desenvolvimento narrativo: é no desvelamento daquela realidade especifica que o filme se esmera, e ainda que mantenha seus interesses documentais (de revelar como “realmente” a coisa toda se passa), ele tem a capacidade de, principalmente pela primeira pessoa do relato (onde Wagner Moura e Rodrigo Pimentel realmente se confundem), nos colocar ao lado de seus personagens.

E aqui é que chegamos no ponto que talvez seja o mais importante de Tropa de Elite, e que tem gerado muitas interpretações no mínimo duvidosas. Pois, embora a narração do personagem de Wagner Moura defenda e até certo ponto heroicize a atuação do Bope, é essencial entender que a voz de um personagem, mesmo que o narrador de um filme, não é a voz do próprio filme (não custa lembrar o clássico exemplo do livro de Agatha Christie onde o narrador em primeira pessoa, aparente instância “confiável” da narrativa, era ao final revelado como o assassino). Estamos aqui frente à questão do ponto de vista que rege uma ficção – e é aí que Tropa de Elite se revela como uma ficção no sentido mais estrito: quando descola sua voz da voz do seu narrador na tela.

Por isso mesmo, parece completamente absurda a idéia de que Tropa de Elite seja um “comercial do Bope” ou mesmo uma justificativa dos métodos do Bope. E os indícios para isso estão mais do que claros ao longo do filme todo, bastando querer ver: embora a voz em off tente justificar ou dar lógica à cada ação vista na tela, as imagens e sons que as mostram (estas sim, a voz do filme) nos apresentam tão somente uma realidade dantesca, uma dinâmica do justiçamento, da tortura, da desumanização generalizada das relações (importantíssima a cena em que Wagner Moura se “cura” da sua crise de estresse ao incorporar o policial dentro de casa com a esposa – apenas para ser abandonado por ela, em seguida). Ao final, quando aquele que era o personagem mais “positivo” da narrativa (Matias) se revela tornado um animal desumanizado, que se volta para a câmera e atira no rosto do espectador com uma carabina, é difícil achar que o filme apresenta isso como algo “legal” – seja em que sentido do termo estivermos falando.

E aí, chegamos ao ponto onde Tropa de Elite se torna um belo filme, depois de uma introdução claudicante e um desenvolvimento interessante: a conclusão não está no filme. A conclusão é jogada para o espectador: se ele resolver rir de algumas seqüências francamente assustadoras, é uma opção dele. Se ele optar por julgar que, ao final de tudo, é melhor um mundo com o Bope do que sem o Bope, isso também é uma escolha dele – que revela muito do que leva à existência do próprio Bope, e por isso mesmo não poderia estar fora do que o filme propõe. Em suma: Tropa de Elite não tem soluções a oferecer, nem respostas a dar. Afinal, ele só quer “documentar” um estado de coisas – humano e social. E inegavelmente isso ele faz, como filme, como fenômeno midiático, como provocador de reações.

Setembro de 2007

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