Trovão
Tropical (Tropic Thunder), de Ben Stiller (EUA/Alemanha, 2008) por
Fábio Andrade Explorando
o explorador
Embora a campanha de publicidade
venda Trovão Tropical como uma paródia aos filmes de guerra, não demora
mais do que alguns minutos para o espectador se perceber diante de um filme radicalmente
diferente das franquias do deboche produzidas em série por Hollywood. Começamos
a projeção com quatro peças falsas: um comercial de blaxploitation contemporânea;
um trailer de uma franquia de filmes de ação capitaneada por um Ben Stiller bombado,
ator que arrasta seu nome para muito além do sucesso; outro de uma “comédia de
peidos” sobre uma família obesa em que todos os personagens são protagonizados
por Jack Black; e um terceiro, de um drama gay em que os olhos azuis de Robert
Downey Jr. são valorizados como a mais gorda isca de lágrimas.
Passamos,
enfim, ao início “real” de Trovão Tropical, com os mesmos quatro atores
principais das peças falsas, e somos bombardeados com imagens já bastante familiares:
cabeças que explodem, montanhas de tripas expostas que um soldado tenta devolver
ao seu abdome, um fuzilamento que não mata, e uma cena pesadamente dramática –
mas, sintomaticamente, à vontade – em meio a todo aquele grotesco. Quando o personagem
de Ben Stiller não consegue acompanhar a cachoeira de lágrimas derramada por Robert
Downey Jr., ouvimos um “corta!” no extracampo, e somos instaurados em uma diegese
metalingüística. Se no projeto Grindhouse os trailers
falsos colocavam o espectador em um certo estado de experiência, aqui eles – embora
curiosamente tenham sido cortados em alguns cinemas brasileiros – são essenciais
à compreensão dos propósitos do filme, pois estabelecem uma óbvia conexão entre
construções tão distintas: são todas imagens pornográficas. Pornográficas, aqui,
não no sentido tradicionalmente erótico do termo, mas sim na definição godardiana;
cenas que, em seu desespero de seduzir o espectador, saltam as mais extremas barreiras
da ética e da moral, em um exercício de exploração (barrigas abertas, planos ginecológicos
de dançarinas de hip hop, construções cênicas que reforçam todo tipo de preconceito,
produções mantidas vivas em grifes com compromissos estritamente industriais,
e olhos azuis que choram lágrimas absolutamente ultrajantes). Ao levar a exploração
a níveis de visível exagero, Ben Stiller parece reforçar, a cada plano, que a
paródia está apenas um grau acima de uma obscenidade extrema aceita e encorajada
por estúdios e espectadores. O que Stiller fará na hora e
meia restante de seu filme é levar toda imagem ao absoluto paroxismo. Seja pela
cultura da celebridade, pela relação arte-comércio, pelos atalhos para o Oscar
(o polêmico filme sobre um jovem com deficiência mental) pelo deslumbre com o
método de Stanislavski (o genial personagem de Robert Downey Jr. – ator tão dedicado
ao método que, para melhor compor um personagem, passa por um tratamento para
se tornar negro) ou pela obsessão arquivista totalizadora do consumidor contemporâneo
(a central discussão sobre o TiVo – sistema que armazena programas de tv em um
disco rígido para que o espectador possa vê-los fora das grades de programação
dos canais). Stiller explode todos os limites éticos da construção da imagem para,
a partir dessa destruição, tirar o espectador de uma posição de conforto em que
ele é freqüentemente abusado. Naturalmente, um filme com
proposta como essa passa por, no mínimo, dois dilemas bastante perceptíveis: o
primeiro é a possibilidade de atacar quem lhe alimenta, produzindo uma crítica
aberta ao atual sistema de estúdios, dentro desse mesmo sistema. Nesse sentido,
não só Hollywood é colocada em uma posição curiosa – a de ser indústria tão dedicada
que até mesmo uma crítica aberta a seus procedimentos pode ser encorajada; desde
que, é claro, dê lucro – mas também os próprios atores que trabalham dentro desse
sistema. Não
à toa, uma das operações mais surpreendentes em Trovão Tropical é a maneira
como um ator encarna – sempre com ironia – traços da biografia de seu companheiro
de cena: Jack Black tendo crises de abstinência de drogas ao lado de Robert Downey
Jr.; Ben Stiller em seu momento Tom Cruise à Nascido em 4 de Julho; Downey
Jr. e sua dedicação ao método, contracenando com Nick Nolte; Tom Cruise em explosão
de nervos não muito diferente da tão famosa cena criada em uma entrevista no programa
da Oprah. Estaríamos diante de atores realmente capazes de tamanha auto-ironia,
ou apenas vendo profissionais da imagem buscando um novo sucesso de bilheteria,
mesmo se isso lhes custar passar alguma vergonha pública? Mais uma vez, não há
respostas fáceis... O segundo dilema vem da velha questão
que atormenta toda paródia: ao levar a encenação de atrocidades a um novo nível
de absurdo, não estaria, o filme, reforçando-a por simplesmente colocá-la na tela?
Será que a melhor maneira de refletir sobre barrigas abertas é filmar uma quantidade
de tripas ainda maior saindo delas? Apesar de essas perguntas não serem respondidas
em tela, Trovão Tropical realiza, ainda, uma outra operação bastante surpreendente:
ao buscar uma noção de realidade exagerada, a produção do filme joga os atores
no meio da selva para, sem qualquer tipo de orientação ou comunicação, retirarem
do drama real algum sofrimento que imprima na película (e aí, os paralelos com
o cinema de Werner Herzog e toda a tradição de exploração do sofrimento pela cena
são bastante claros). Nesse meio tempo, o diretor se mata, acidentalmente, pisando
em uma mina e os atores são inseridos dentro de uma guerra real, entrando em território
dominado por narcotraficantes. Ao explodir, literalmente,
a responsabilidade realizadora em nome de uma impressão de real, Stiller faz com
que a ficção cruze, de fato, as fronteiras da vida. Embora não se ponha a responder
o dilema de sua própria representação (deveria?), Trovão Tropical é inteligente
o suficiente para assimilá-lo à construção do filme: a encenação é um ato de trazer
à vida, mas não se deve confundir uma coisa com a outra. É isso que acontece com
o personagem de Ben Stiller e seu “filho” vietnamita, e as conseqüências não poderiam
ser mais claras: ele é esfaqueado nas costas. Mas, claro, acaba ganhando o Oscar
por isso. Setembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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