Bravura Indômita
(True Grit),
de Joel & Ethan Coen (EUA, 2010)
por Raul Arthuso
Nossos
velhos heróis
O mundo dos irmãos Coen não é muito chegado
em leis. Mais precisamente a uma lei que possa ser tomada como
finalidade para a vida e para as ações das pessoas
- capaz de, em certa medida, explicar a sucessão dos fatos,
as conseqüências das ações. Os Coen recusam,
desde o início da carreira, a lógica causa-efeito.
Se a vida das personagens toma rumos a partir de suas decisões,
muitas delas relacionadas ao crime (assassinato em Gosto de
Sangue e Fargo; fuga da prisão em E Aí,
Meu Irmão, Cadê Você?; golpe empresarial
em A Roda da Fortuna), não é a tomada de
decisão em si que causa a virada na vida das pessoas, mas
um onipresente acaso agindo para catalisar uma espécie
de tragédia humana. Mais fortemente, desde Onde os
Fracos Não Têm Vez o acaso é protagonista
no jogo dos Coen, conduzindo a quiproquós constrangedores
de tão trágicos, como em Queime Depois de Ler,
e ao tour de force dantesco do protagonista contra seu
destino em Um Homem Sério. Nestes filmes, não
há idéias de bem ou mal, mas ações
que remetem ao bem (Larry Gopnik, protagonista de Um Homem
Sério, se define como alguém de retidão)
e ao mal (Anton Chigurh, personagem de Javier Bardem em Onde
os Fracos Não Têm Vez, sendo este encarnado).
Pode-se pensar que qualquer idéia de explicação
existencial é impossível. Resta ao homem torcer
pela sorte grande.
Talvez fosse o caso de pensar que, então, na terra sem
lei típica do faroeste, os Coen estariam em seu território
por excelência, e isso é o que verdadeiramente interessaria
aos realizadores, o que explicaria Bravura Indômita
ser o mais clássico dos filmes da dupla. Contudo, não
é apenas isso. A noção de um espaço
onde a civilização (leia-se "a lei") não
botou os dedos nasceu com o gênero, e a representação
sombria e suja deste lugar (oposta ao original de Henry Hathaway)
já é um ganho do faroeste pós-Leone.
Um espectador desavisado poderia sim tomá-lo como
um faroeste convencional, já que o filme se reporta aos
valores e sentimentos mais essenciais do gênero e tem como
força motora a vingança - razão de dez em
dez filmes com John Wayne de chapéu e arma na mão.
Os Coen não perdem de vista a dimensão aventureira,
tão própria do espetáculo do faroeste, reafirmando
a mitologia do gênero. Há ainda a ocupação
de um espaço árido, metáfora da solidão
intrínseca ao fora da lei, aos caçadores de riquezas,
aos homens da justiça cuja lei é imposta na força,
aos seres que transitam pelos desertos, pradarias e matas secas.
O faroeste está aqui de corpo presente na afirmação
mais fordiana do espetáculo do gênero.
Contudo,
há um outro aspecto mais caro aos Coen. Se a terra é
sem lei, as personagens não resolvem seus problemas na
bala. Há antes um impulso à negociação
que conduz o jogo cênico do filme. As personagens falam
e retrucam, duelam com as palavras, tentam driblar as armas verbais
do interlocutor para obter o que desejam (é interessante
pensar que um dos ferimentos de LaBouef, personagem de Matt Damon,
seja na língua - e que ainda assim ele não pare
de falar). Se pensarmos no que pede o faroeste, os duelos verbais
promovidos por Mattie (Hallie Steinfield), Cogburn (Jeff Bridges)
e LaBouef estão muito mais para um princípio hawksiano
que fordiano. A articulação das palavras
e do corpo na tela é mais decisiva que a força do
cano da arma apontada para o adversário. É uma maneira
de enxergar a condução das ações muito
próxima de Uma Aventura na Martinica e À
Beira do Abismo, ambos de Howard Hawks.
Antes de serem matadores, as personagens de Bravura Indômita
são empresários, articulando sua subsistência
num lugar que não lhes dá nada e, logo, onde tudo
tem valor de troca. Isso nos leva de volta a toda a filmografia
dos Coen, na qual este princípio da negociação
está presente em diferentes medidas. A negociação
é a única ação possível num
mundo onde a satisfação plena se mostra inviável,
seja ela material (Fargo; A Roda da Fortuna) ou não
(Barton Fink; Um Homem Sério). E, por fim, essas
negociações se mostram trágicas, pois sempre
há perdas irreparáveis, seja a morte de meio mundo
em Gosto de Sangue, Matadores de Velhinhas e Onde
os Fracos não Têm Vez, a irônica gravidez
em O Grande Lebowski, um braço que seja em Bravura
Indômita.
O
caso é que Bravura Indômita é o mais
clássico dos filmes dos Coen porque se grande parte de
suas obras causam um estranhamento no espectador por um certo
deslocamento dos códigos, seja por ironia, seja pela hipérbole,
aqui o espaço mitológico do gênero lhes é
familiar. Por outro lado, o que se poderia tomar como elemento
de estranhamento é um princípio caro e recorrente
na carreira da dupla. A conjunção do útil
ao agradável torna o prazer da sessão de Bravura
Indômita - e isso é fundamental - clássico:
estamos plenamente confortáveis na companhia de velhos
heróis e suas habituais armas. Não chega a surpreender
que, comparado ao agente federal de John Wayne na versão
original de Hathaway, o Rooster Cogburn dos Coen seja um Lebowski
dos caubóis.
Março de 2011
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