Turistas
(idem), de John Stockwell (EUA, 2006) por Eduardo
Valente
Espelho, espelho meu Como é curioso
o poder discursivo do cinema. No mundo das idéias e das palavras é bem difícil
chamar a atenção para si, mas no universo do audiovisual não deixa de ser impressionante
que possa-se atingir tantos, com tão pouco. Basta ver a desproporcional atenção
recebida por este filme de John Stockwell: Turistas é um inofensivo produto
estético da mais baixa (em ambições, pelo menos) indústria cinematográfica americana,
e no entanto recebeu enorme consideração, como se fosse uma importante tese sobre
um determinado tema. Mas, qual era o tema mesmo? Para alguns,
o filme seria mais um exemplo do desprezo do “primeiro mundo” pela realidade do
“meu, do seu, do nosso” terceiro mundo. É a tese “olhar estrangeiro”, que segue
a linha do documentário auto-celebratório de mesmo nome. Segundo
esta visão de mundo, o artista alienado do primeiro mundo vem até aqui para explorar
nossas imagens-clichê à seu bel prazer, causando inestimáveis danos – no mínimo
que seja à nossa já combalida auto-estima. O assunto, que é complexo e tem inúmeras
nuances (como a validade e o uso feito por nós mesmos destas imagens-clichê para
fins “comerciais”, turísticos, ou mesmo de auto-validação cultural; como a distância
enorme que separa filmes claramente de ficção da realidade; como as operações,
eminentemente cinematográficas, de “manipulação” de aspectos do real – geográficos,
culturais, sociais, etc – existentes em inúmeros filmes brasileiros sobre o próprio
país, etc), vira algo tão simplório (“gringos maus e burros, querem nos difamar”)
que consegue fazer com que luminares do cinema como um Zalman King (de Orquídea
Selvagem) pareçam sofisticados analistas de semiologia em comparação. Dentro
desta visão, é curioso (e dificultoso) que Turistas seja extremamente bem
pesquisado e ambientado no cenário brasileiro – às beiras do que se poderia chamar
de “respeitoso”. Nele não só se sabe que os brasileiros não falam espanhol, como
uma das personagens estrangeiras afirma o desconhecimento disso como uma ofensa
a um “gringo ignorante” e a motivação principal do vilão do filme é de uma sofisticação
sócio-política-histórica particularmente curiosa. Há uma riqueza de detalhes no
filme, que vai da cuidadosa questão lingüística à ambientação das ruas da pequena
cidade periférica onde os gringos se perdem, que coloca por terra boa parte das
possíveis piadas prontas sobre a ignorância com que “somos tratados” (embora,
claro, o ônibus “rapidão” que liga o Rio de Janeiro a Recife ou o avião teco-teco
que leva os personagens a Salvador no final sejam uma considerável “licença poética”
– mas temos que concordar que o motorista do ônibus é um personagem fruto de clara
e extensa pesquisa pelos transportes coletivos cariocas). O que paradoxalmente
parece complicar as coisas é que a atenção a detalhes que o filme tem no seu ambiente,
se diminui a facilidade do aspecto “folclórico” da tese “olhar estrangeiro”, ao
mesmo tempo daria mais subsídios para o discurso “embratur” de que ele causa danos
à imagem externa do país ao propor um olhar aproximado com uma realidade brasileira
(e aí também não cabe só comprar a tese do próprio diretor de que não queria representar
de maneira alguma esta realidade, tanto pela sua pesquisa, quanto pela seqüência
dos créditos iniciais, que claramente afirma um determinado realismo de documentação).
Neste aspecto, pelo menos, parece inegável que Turistas
é sim um pouco mais complicado do que, digamos, um episódio de desenho animado
dos Simpsons num Rio de Janeiro alucinado. Mas também não dá para comprar esta
“versão oficial” do Estado brasileiro, e isso por outros motivos além do mais
óbvio (ou seja, que dentro do que oferecemos ao estrangeiro através do noticiário,
não será um filme de terror B que fará um estrangeiro decidir ou não visitar o
país). Não seria o menor deles a questão de que o filme foi plenamente apoiado
para sua realização no Brasil pelo próprio Estado, através da Ancine. Teríamos
então um confronto de instâncias governamentais aqui: ou bem achamos que um filme
como Turistas nos faz bem (seja pelos investimentos que traz nas filmagens
aqui, seja na contratação e experiência ganha numa realização industrial de ampla
mão de obra local – cuja predominância nos créditos pode tanto explicar a ambientação
mais realista quanto complicar a tese de que as partes fantasiosas devem-se tão
somente à “ignorância gringa”) e que, portanto, deve ser incentivado; ou que nos
faz mal, e deve ser evitado. Ganhar dos dois lados parece caso típico de uma malandragem
caricaturalmente brasileira. Como
se pode ver, Turistas é opaco o suficiente para que qualquer um consiga
ver nele o que tiver vontade. E isso se deve principalmente ao fato de que, clichês
ou não, ambiência real ou não, o filme é simplesmente muito, muito ruim. Claro
exemplar de uma tendência atual do horror americano (que passa pela incorporação
de aspectos do gore ao discurso eminentemente moralista que caracterizava,
por exemplo, o slasher movie), o filme consegue jogar fora cada uma das
suas possibilidades de interesse (a perseguição subaquática do seu clímax, o discurso
“politizado” do vilão, etc) numa constrangedora inabilidade cinematográfica (para
criar climas, para filmar cenas de suspense, para construir personagens). Fica
claro que o filme não tem a ambição de ser um Jogos Mortais (filme fraco,
mas que inevitavelmente representa um marco), mas tão somente mais um clone genérico
deste – fadado ao esquecimento e ao anonimato não fosse, justamente, seu aspecto,
er, “polêmico”. Talvez, aliás, esta seja a principal tese ainda não explorada
sobre o uso da imagem do Brasil no cinema estrangeiro (chamemos de “a teoria Anaconda”):
por que diabos só se fazem filmes péssimos por aqui?
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