U2 3D (idem), de Catherine Owens
e Mark Pellington (EUA, 2008)
por Eduardo Valente

Tateando uma técnica

A crítica (de cinema no caso, mas não só ela), no seu exercício diário, tem como característica intrínseca a seu funcionamento a inevitabilidade de tornar-se datada, de ser um exercício de apreensão das expressões no seu tempo. Por isso mesmo, podemos dizer com certeza que vai chegar o dia em que as críticas escritas sobre estes primeiros produtos realizados no novo sistema de imagem em terceira dimensão precisarão ser revistas e repensadas na medida em que o formato for adquirindo traços mais reconhecíveis. No entanto, nestes primeiros exercícios de entendimento destas obras é quase impossível não dar tanta ou mais relevância ao que o formato traz para a mesa de debate do que aos filmes por si mesmo.

Porque essa é a natureza mesma da relação que conseguimos estabelecer com estes filmes hoje: ao mesmo tempo em que tentamos avaliar as operações específicas de cada filme, estamos ainda nos impressionando (no sentido mais puro do termo, sem valorações) com uma apreensão efetivamente nova do ato de olhar numa sala de cinema – algo que já dávamos como mais do que resolvido. Somos, frente a estes filmes, num certo sentido parecidos com as crianças (ou mesmo adultos) que nunca foram ao cinema. Há, por isso mesmo, uma certa magia iniciática cuja relevância certamente se perderá com o tempo como argumento, ou mesmo como forma de olhar as obras. Não convém, porém, tentar se adiantar neste tempo e excluir esse elemento aqui, já de saída, pois seria principalmente desonesto com a experiência como a estamos vivendo.

Assim, ver este U2 3D (assim como realizá-lo, na verdade) passa muito por descobrir e avaliar não só quais procedimentos funcionam mais ou menos dentro da sua proposta como filme, mas também dentro do funcionamento deste novo modelo de visualidade. Por isso, não podemos evitar uma certa excitação quando percebemos, por exemplo, que este 3D funciona tanto nos planos mais abertos e monumentais como num close sobre um rosto humano. Sim, porque ao contrário da tecnologia anteriormente existente, a questão principal aqui é uma de texturas, e não mais apenas de relação entre dimensões no espaço. O 3D agora se mistura com a alta definição das imagens para dar não apenas uma sensação aproximação do espectador com determinados elementos, mas principalmente a possibilidade de olhar de maneira diferente para cada imagem.

Por isso mesmo, o que me parece mais fascinante acompanhar a longo prazo, nos caminhos que a tecnologia e o cinema dominante vão tomar, é o fato de que este 3D traz consigo um dilema radical para o cinema como espetáculo: quanto mais se alonga uma tomada neste novo formato, mais maravilhosa ela pode se tornar, porque se trata aqui de um potencial de habitarmos mesmo esta imagem, de irmos nos instalando dentro dela (não por acaso uma das mais bem resolvidas canções do filme-show nas questões da decupagem para o 3D é One, onde os planos se alongam por bem mais tempo). Só que toda a temporalidade do cinema e das imagens do espetáculo modernas tem sido direcionada no caminho contrário, da rapidez, da evolução rumo a um não-espaço e a um não-tempo, onde a experiência do espectador parece cada vez mais pensada na idéia de fluxo quase hipnótico de passagem, ao invés da instalação. E aí fica a dúvida: será que o novo 3D se adaptará ao zeitgeist sensorial atual ou ele ajudará a mudá-lo de direção? A ver nos próximos capítulos.

Coadjuvantes em seu próprio filme

Especificamente em U2 3D, percebemos que a opção de seus diretores é por assumir o formato do “show filmado”, algo curioso como operação tendo em vista que hoje em dia este modelo tem ficado restrito aos DVDs musicais, enquanto os filmes para cinema, mesmo quando giram em torno de um show (e aí, até pela proximidade no tempo, é impossível não pensar no Shine a Light, de Martin Scorsese, com os Rolling Stones), sentem a necessidade de intercalá-lo com outros registros no entorno do espetáculo. Mas é claro que isso faz todo sentido, uma vez que antes do novo 3D um show em cinema passava sempre como um registro do mesmo num formato de experiência distinto, distanciado, enquanto aqui se pretende permitir ao espectador uma experiência de imersão no ambiente mesmo do show que reproduza, de alguma forma, a experiência de ter estado presente ali, ao vivo. Mais do que isso, na verdade, deseja-se permitir ao espectador uma experiência “total” do show, porque não apenas simula-se a sensação de estar presente no espaço em que se deu o show, como estar presente em espaços múltiplos deste espetáculo (do palco – seja pela proximidade dos músicos, seja pelo ponto de vista destes da platéia – até o mais distante espectador).

O que é curioso observar, frente a esta tentativa de uma ultimate experience deste show, é como este mesmo desejo de totalização é parte do que explica que o resultado final resulte muito menos energizado do que era o caso no filme de Scorsese acima citado, por exemplo. Porque por mais que o 3D simule uma presença física, o que ele não pode fazer é permitir uma verdadeira interação para além das texturas visuais. E aí, o show do U2, com seu pendor para a grandiosidade de arena, acaba se revelando uma péssima escolha para algo que quer nos levar para perto – porque os próprios músicos não parecem perto de nada, a começar por eles mesmos.

Embora haja vários momentos em que a movimentação (principalmente de Bono, mas não só) tente criar situações desta dita “aproximação” (menos entre os músicos e mais entre eles e a platéia – ou pelo menos a parcela desta mais próxima do palco), nunca se consegue evitar a sensação de um espetáculo onde esta aproximação soa posada, protocolar,  parte do script – o que aliás, no caso, é mais do que uma expressão de linguagem, porque para juntar aquilo que claramente são 5 ou 6 apresentações diferentes como se fosse apenas um show contínuo, certamente foi montado um roteiro de movimentos no palco bastante rígido, para que os shows pudessem permitir o corte entre eles com continuidade. O que resulta disso é que nos aproximamos de um show em que não parecemos realmente convidados a estar perto, a dividir a experiência pequena de habitar aquele palco – como, por exemplo, acontecia em pleno 2D no filme de Scorsese/Stones, com a câmera hiper-atenta e a interação musical única no palco. Aqui no filme-show do U2, todas as cenas no palco parecem frias, ensaiadas, e, não obstante as novas texturas do 3D, continuamos distantes – se não na dimensão física da imagem, na emocional (e para isso certamente não ajudam em nada as tradicionais papagaiadas politicamente corretas de Bono, quando ele deixa de lado o – bom – cantor que é para encarnar o guia político-espiritual de massas).

A impressão que fica é que estamos muito perto de um show que seria melhor visto à distância, como espetáculo audiovisual de arena que é – não por acaso um dos mais efetivos planos do filme se dá num momento em que a câmera filma o palco bem de longe, da posição de um espectador distante. Temos vontade de que a imagem fique lá mais e mais tempo, pensando em como seria fascinante a experiência de um show como este filmado em 3D a partir de um plano-sequência estático que nos dá uma visualidade distinta de tudo que já vimos antes, tanto em shows como em filmes. Outra opção, radicalmente distinta mas também atraente, é que o filme assumisse uma interação mais viva com os efeitos visuais do telão do show, como acontece em apenas duas músicas, no que são momentos de grande interesse plástico. Ali, a interferência na imagem tira o peso de simples registro e cria uma experiência audiovisual única que poderia ser bem mais explorada pelo filme.

Aproveitando pouco estas possibilidades, o filme termina tendo seus melhores e mais engajadores momentos quando a câmera deixa de lado os músicos (ou os coloca apenas como um objeto de primeiro plano), e se foca na platéia. Isso acontece pela mistura de dois fatores: primeiro porque, o fascínio genuíno que se vê nos rostos dos espectadores é de uma emocionalidade muito mais potente que a encenação de emoção dos músicos. Ali, naqueles rostos que vemos com uma definição de imagem até então desconhecida em registros audiovisuais de show, há o sentimento de algo de novo. Além disso, quando a platéia é filmada (seja do palco, seja do fundo), este novo 3D cria uma tal riqueza de dimensões e texturas entre os espectadores que a imagem nunca consegue ser menos do que hipnótica. De repente, cada um daqueles tolos movimentos já tão vistos em filmagens de shows (as meninas nos ombros de amigos, as palmas, os celulares acesos – aliás as telas e mais telas de celulares e câmeras digitais são um capítulo à parte como imagem fascinante) surgem renovados de força e potência visual. Olhar para estes planos acaba sendo o grande prazer deste U2 3D – relegando os músicos do U2, independente de sua qualidade e presença no palco, a um inesperado papel de coadjuvantes no seu próprio filme.

Setembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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