ensaios
Última foto: possibilidade da imagem
por André Brasil e Cezar Migliorin

Muitas foram as mortes da imagem. Ela já morreu com os ícones sagrados, com a pintura, com a fotografia, com o cinema. Ela se tornou uma espécie de zumbi hiperativo com a televisão. Morre com a arte, morre e carregaria consigo a política. Mas, por meio de suas sucessivas mortes, a imagem vive. Um nascimento pela morte, diria Régis Debray, em uma fórmula paradoxal. “Enquanto houver morte, haverá esperança – estética”.

Hoje, celulares, câmeras digitais e todo tipo de tecnologia móvel pretendem tornar a imagem viva, interativa, esperta, ágil, falante. Como se, mais que nunca, ela fosse imprescindível e inseparável da vida mesmo. Mas, estranhamente, as imagens que se produzem – vide o recente programa Retrato Celular, no Multishow – nos chegam fracas, impotentes, desbotadas. Portadoras de uma sensação de dejà vu, elas são intensas como um sorriso amarelo. Pois é diante da morte de um importante “personagem” das imagens dos últimos 150 anos – a fotografia analógica – que Rosângela Rennó renova a potência das imagens, fotográficas ou não. Trata-se de A Última Foto, exposição que esteve em cartaz na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro, até o último 30 de setembro.

Não podemos dizer, com certeza, que se trata de um exposição de Rosângela Rennó. Afinal, A Última Foto é um conjunto de 25 obras de fotógrafos convidados (listados ao fim do artigo) para participar de uma espécie de dispositivo coletivo. Cada um destes artistas é desafiado a fotografar o Cristo Redentor com uma das câmeras antigas, parte da coleção da anfitriã: Kodak, Epsilon, Nikon, América Box, Yashica, Canon, Miranda, Box Tengor, Minolta, Baby Brownie, Olympus, Rio 400, Contaflex, estas e outras máquinas aparecem na exposição como obra e como co-autoras das obras. A montagem, feita por Rennó, coloca lado a lado a imagem e a câmera que a captou.

Não há traço de nostalgia nesse adeus. Não é um tempo novo e progressivo que autoriza a artista a se despedir da fotografia analógica, porque esse adeus – sua invenção – é justamente o que possibilita a imagem, o que cria as possibilidades para que ela exista, viva. Toda a exposição é atravessada por certo anacronismo e cada imagem parece amalgamar um passado (a morte da fotografia analógica, as câmeras antigas e seus designs sedutores) e um porvir (a vida da fotografia e da imagem). As câmeras antigas não fazem imagens antigas, elas são sempre nossas contemporâneas.

Duplamente, o dispositivo criado por Rosângela Rennó torna possível a imagem. De um lado, ele recria a memória da fotografia, reinventa o passado – aquele encarnado pelas câmeras antigas – e, com isso, torna esse passado presente, atual, novamente aberto à criação. Por outro lado, ele possibilita a imagem que havia sido impossibilitada pelo clichê. Rosângela Rennó inventa um dispositivo para fotografar o clichê: afinal, pouca coisa foi mais fotografada do que o Cristo Redentor. 

Para além da fotografia, o que está em jogo é a imagem, a crença na imagem. Para nos fazer crer é preciso inseri-la em um processo mais amplo, que a ultrapassa. A imagem se torna parte de um dispositivo (máquinaria e maquinação) que inclui as câmeras e a fotografia analógica. De maneira espectral cada foto da exposição participa e é atravessada pelo processo que a forja.

Analisemos um pouco mais esse dispositivo, aquele que, para além da imagem, e na imagem, a  possibilita e é possibilitado por ela. A relação que permite cada uma das fotos está longe de se limitar ao encontro entre fotógrafo, aparelho e objeto fotografado. O dispositivo criado por Rennó articula uma multiplicidade de atores: softwares de edicão, máquinas fotográficas, laboratório, fotógrafos, a própria artista plástica, o espaço, a forma de montar as fotos, o Cristo Redentor, os clichês que dele se reproduziram. A potência da imagem não se reduz a nenhum desses atores, de um a outro, ela oscila. Não se prende nem à objetiva nem a subjetividade do fotógrafo.

Trata-se de uma justaposição, de uma bricolage, que torna indiscerníveis as dimensões individual e coletiva, humana e maquínica da exposição. Aspecto fundamental do dispositivo: operar entre indivíduos e máquinas, entre subjetividades, singularidades e clichês.  É ali, no interstício, que a imagem se insinua, nunca sozinha ou isolada. “Não há uma imagem, apenas imagens”, é a fórmula de Godard em sua ética do múltiplo. A imagem é sempre parte de uma montagem, exatamente como acontece na exposição de Rosangela Rennó.

Anacronismo do virtual



O tempo engendrado pelo dispositivo, repetimos, é menos cronológico do que anacrônico. Nada aqui é sucessivo: as imagens não são consequência das máquinas, nem parte de uma narrativa das artes e da técnica. De uma imagem a outra, não há progressão: cor, grão, nitidez, nenhuma evolução técnica é traçada ali. Ao contrário, a artista opera uma construção temporal complexa, em que o presente é uma espécie de abertura para o passado e para o futuro. Ao invés de ser um simples instantâneo, por meio do qual o tempo se fixa na imagem, cada foto libera o tempo, permite que ele se desregule. Anacrônicas, as imagens não são nem um ponto em uma uma linha do tempo, nem totalmente isoladas, fechadas em sua eventualidade, como fragmentos de eternidade isolados do dispositivo que os constitui. É na virtualidade do tempo que elas surgem.

Rosângela Rennó efetua uma operação simples, mas que não resulta pouco: poeticamente, ela desfaz a retórica da evolução técnica e desconstrói a idéia – ingênua, mas persistente – de uma relação causal entre máquina e imagem. Os aparelhos se espelham nas imagens, eles estão ali presentes, expostos. Entretanto as imagens não espelham os aparelhos. A virtualidade temporal é justamente este jogo de espelhos em que a imagem transborda o que deve espelhar, um transbordamento que é da representação, mas que é também temporal. E ainda: quando o tempo se desgoverna e perde sua estabilidade cronológica, é a própria representação que se vê a deriva. Em um só gesto, a artista desregula o tempo cronológico – a condição de possibilidade da representação – e, com isso, faz derivar também a representação. Estas se tornam, então, efetivamente, imagens virtuais.

Autorias sem propriedade



É prática recorrente no trabalho de Rosângela Rennó a apropriação de imagens guardadas e achadas. É a sua maneira, digamos, de compartilhar a autoria: se aproximar e se distanciar dela. Em A última foto, a artista transfere para o dispositivo esse procedimento. Não se trata mais da reapropriação de um objeto, em uma postura duchampiana, mas de comparilhar autorias de maneira poética, problemática, e pouco irônica. Mas, atenção, este compartilhamento, esse descentramento da autoria, não significa que o centro tenha restado vago ou tenha sido definitivamente ocupado por outro ator. Não, o dispositivo é acentrado, constitui-se no cruzamento de linhas de criação e tensão: todos são autores, mas ninguém retém, detém, a autoria. Trata-se, digamos, de uma autoria sem propriedade.

É assim que Rosângela Rennó precisa se aproximar e se afastar do dispositivo criado por ela, em uma oscilação, uma hesitação constante. As fotos – descobrimos pelo texto da exposição – foram editadas por ela e pelos fotógrafos. Além de explicitar a múltipla presença no dispositivo, a edição (e a montagem!) ressaltam a presença de Rennó na finalização do trabalho. Mesmo depois que seu dispositivo é posto em funcionamento, a artista não se retira. A artista varia a distância que mantém em relação a ele. O acaso e essas outras subjetividades que compõem as obra estão absolutamente implicados, mas na edição e na montagem Rosângela Rennó retoma, momentaneamente, para si o trabalho.

Esse gesto de retomar para si não deve ser visto como uma insistência em seu lugar de autora, lugar que ela perdera ao inventar seu dispositivo. Pela manutenção do dispositivo há um embate. Ele precisa ser constantemente inventado. No dispositivo há o risco do acaso, do imprevisto, de presenças múltiplas e  heterogêneas: isso não se conserva com muita facilidade. Reificar o autor aqui está fora de questão. É por isso que ela monta, edita e pensa, mas não fotografa nesta exposição de fotografias. Ela impossibilita que os trabalhos dos fotógrafos convidados se afastem do dispositivo, ou seja, passem a ter uma autonomia em relação ao processo que forja as imagens. Cada obra deve permanecer ali, na tensão do dispositivo, e atravessadas pela tensão e pelo desejo de se desgarrar, de ganhar vida própria, fora dos limites (e potências) do dispositivo.

Este não é o fim de uma história, ou o fim das imagens. Com a última foto, o que parece desaparecer – a câmera e a fotografia analógica – ainda permanece, insiste. Porque é próprio do que é anacrônico permanecer, aparecendo onde menos esperamos. O passado não é nem reificado (como se as imagens e a arte desaparecessem quando ele passa), nem esquecido (como se não fizesse parte das potências e saberes das imagens do presente). É por isso que este não é um adeus nostálgico, mas uma memória que retorna, que se reinventa, que se repete diferindo de si mesma. Em chave benjaminiana, o passado das imagens se repete para tornar-se novamente possível.

Feita a última foto, a câmera é lacrada. Como se a impossibilidade em se fazer a imagem fosse sua condição de possibilidade, aquilo que torna necessário e urgente fazê-las.

Créditos das imagens exibidas no texto (por ordem, de cima para baixo): Odires Mlászho, Débora Engel e Vicente de Mello.

Rosângela Rennó, A Última Foto. Artistas colaboradores: Antônio Augusto Fontes, Caroline Valansi, Claudia Tavares, Cris Bierrenbach, Cristiana Miranda, Débora Engel, Denise Cathilina, Eder Chiodetto, Edouard Fraipont, Luiz Garrido, Marcelo Tabach, Milton Guran, Nino Andrés, Odires Mlászho, Otávio Schipper, Patrícia Gouvêa, Paula Trope, Pedro Motta, Rogério Reis, Ruth Lifschits, Thiago Barros, Vicente de Mello, Walter Mesquita, Zé Lobato
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Outubro de 2007

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