in loco - cobertura dos festivais

Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente

Uma noite no cinema

Há muitas formas de tentar se aproximar da exibição (anunciada como a primeira e a última) deste Um Dia na Vida, que a Mostra de SP realizou no Cine Livraria Cultura 1 às 21hs (na verdade, mais para 21h30) do dia 28/10/2010 (o caráter de evento único justifica a precisão). Embora todo o gesto desta exibição só faça sentido numa sala escura, no formato tradicional que se estabeleceu como isso que entendemos como o fenômeno “cinema”, a maioria destas aproximações não passaria por categorias diretamente relacionadas ao cinema, o que com certeza seria visto com muitos bons olhos por Eduardo Coutinho. A começar pelo fato desta aura de “evento único” (plenamente justificada por questões práticas relacionadas a direitos autorais), que remete muito mais ao teatro ou às apresentações de música (embora não houvesse intervenção artística ao vivo); passando pela proposta que se aproxima das artes visuais, principalmente das instalações, onde a experiência da fruição é considerada pelo próprio autor mais importante do que o objeto a ser fruído; e, finalmente, da televisão, que é no fundo objetivo e razão única da existência deste, na falta de termo melhor, “filme” (o próprio Coutinho hesitou muito em chamá-lo assim, usando termos como “coisa” ou “troço”).

Antes de falarmos mais, parece claro ser importante um mínimo de descrição do que é este Um Dia na Vida (e vale mencionar que segundo Coutinho ele só tem esse título – ou qualquer título, na verdade – porque a Mostra SP pediu a ele que desse algum, para que pudesse ser anunciado na programação), principalmente se considerarmos que a maioria dos leitores não vai poder tê-lo visto – ou quiçá jamais poderá, em mantendo-se a proposta da exibição única (fato que parece duvidoso que vá acontecer). A tal “coisa” é o resultado de 19 horas ininterruptas que Coutinho passou gravando emissões da TV aberta brasileira, no dia 1o de outubro de 2009, efetuando ao vivo troca de canais. Não há na tela nenhuma intervenção visual do cineasta para além de um contador que informa a hora em que as imagens foram ao ar. Mas há, é claro, um gesto essencial de intervenção: a edição que transformou estas 19 horas de experiência em 1 hora e meia de audiovisual, como discutiremos mais adiante. Para a gravação, havia apenas alguns pressupostos. Primeiro, quanto a escolha do dia a ser gravado: que fosse o mais comum possível, tendo por esta razão sido escolhida uma quinta-feira (não sendo fim de semana ou feriado, nem tendo futebol na TV nem nenhum grande evento mundial ou nacional pré-programado). Segundo, que o material captado fosse todo originalmente produzido para a TV (ou seja, não seriam gravados, por exemplo, trechos de filmes para cinema, exibidos na TV).

A partir dessas escolhas, “a coisa” se compõe de uma maçaroca de imagens, no geral incrivelmente mal cuidadas, que começam com um programa de telecurso da TV Brasil (uma aula de inglês) e termina com o famigerado Fala que eu Te Escuto, da TV Record. No meio, a lógica de programação da TV aberta brasileira ao longo de um dia: pela manhã, alguns infantis (Tom e Jerry, Chaves); na maior parte do dia, uma grande quantidade de produtos voltados às mulheres (principalmente os programas femininos – estão lá Márcia, Ana Maria Braga, Dia a Dia); algumas telenovelas (duas brasileiras na Globo e uma mexicana na CNT); programas “jornalísticos”, que passam pelos jornais Hoje, Nacional e da Globo, e incluem os vespertinos de Datena ou Wagner Montes (toda a programação local é do Rio de Janeiro); e vários programas religiosos. Entremeando tudo isso, vários comerciais e até a inserção de propaganda política gratuita (em ano não-eleitoral, ou seja, programas de partidos).

Os dois caminhos teóricos mais óbvios a partir desse apanhado, embora sejam ambos plenamente válidos e mais do que possibilitados pelo próprio objeto, não nos parecem os mais profícuos no espaço desta revista. Um deles seria refletir sobre a qualidade do que é exibido na TV brasileira ao longo de um dia – uma valoração que, embora certamente tivesse que ser negativa, feita por quem quer que fosse, precisaria de uma quantidade de senões e contextualizações (sobre a função e a funcionalidade da TV, sobre a relação causa-efeito entre espectador e programação, etc etc) que pediriam um debruçar-se sobre esta questão que não pretendemos aqui. O outro caminho, mais arriscado ainda, seria o de tentar ler o que esta programação nos diz sobre o Brasil – tomando por base a idéia de que a TV aberta seria, ainda hoje, o meio de comunicação que mais tenta universalmente comunicar-se com uma amplitude de públicos que abarque essa noção de “Brasil”. De novo, não nos parece que tenhamos aqui nem o espaço nem a expertise, de cunho eminentemente sociológico, para se arvorar por este caminho ao ponto de chegar a conclusões que não sejam excessivamente óbvias ou generalizantes.

Por isso, talvez o que interesse mais pensar aqui, como o próprio Coutinho parece principalmente inclinado a fazer a julgar por sua apresentação do filme, seja o gesto criativo (mais que criador) de pegar esta programação e dar a ela esta embalagem da exibição nobre num cinema. O primeiro dado que sai daí, já mencionamos: seria isso um filme? O próprio Coutinho por um lado duvida, mas por outro lembra de uma questão óbvia (“foi projetado numa sala de cinema, é um filme”). A somar-se a isso, porém, há questões interessantes, como a opção de apresentar o material sem nenhum crédito, seja de equipe (embora exista, obviamente, uma edição, assim como houve uma captação, há produtores; há, em suma, um olhar), seja de produção. O filme esvazia-se já aí como tal, como este objeto típico e fetichizado de “gesto cinematográfico”, e faz questão de exibir na tela apenas o seu título (ainda assim reticente, como já comentamos) e um misterioso subtítulo (“material de pesquisa para um filme futuro”) - algo que pode inclusive ser apenas um grande disfarce de ordem legal.

Mais profícua do que essa questão “sofismática” (é ou não um filme?), uma outra se apresenta com força: a da percepção deste no espaço de um cinema. Afinal, como muito bem lembrado pelo próprio Coutinho e por Jorge Furtado no debate que houve depois da exibição (e que foi pouco além disso, provando que talvez o gesto seja mais forte que a possibilidade de refletir a partir dele), a imensa maioria do que ali foi mostrado, mesmo em tempos de YouTube, é pensado para o consumo imediato e desatento que caracteriza a televisão. Se mesmo as telenovelas podem ser pensadas assim (embora sejam reprisadas), em especial os programas “ao vivo” assim o são: os telejornais, os religiosos, os programas femininos. Tudo aquilo é feito com a idéia essencial de ser imediatamente perecível, e Coutinho nos propõe então este problema: ao retirar desse material essa característica, o que acontece com ele? E mais, se além de perecível, ele é pensado para um visionamento desatento (“as imagens gritam o tempo todo”, como disse Furtado), que briga com uma série de outros elementos pelo olhar de um espectador que pode estar longe da TV, fazendo outra coisa ou não, o que acontece então quando isso é colocado numa tela enorme, no escuro, para fruição única, atenta e coletiva? Quais elementos constitutivos vêm à tona, e o que isso nos ajuda a intuir sobre o tão citado “específico televisivo”? São perguntas que o filme força a que nos façamos enquanto passa pela tela, e que mais do que respostas nos propõe mesmo incômodos.

Para além disso tudo, porém, há ainda o gesto constitutivo principal do filme, o qual Coutinho tentou ao máximo diminuir, se afirmando como um não-autor que “apenas capturou imagens aleatoriamente”, mas que não pode ser ignorado por ser aquele momento em que, efetivamente, isso tudo se transforma num filme (afinal, no caso das questões acima levantadas, poderíamos pensar, como gesto de intervenção artística até mais efetivo, o ato de apenas projetar ao vivo, ao longo de um dia, a programação de uma TV - sendo zapeada - na tela de um cinema). Pois o que torna Um Dia na Vida em um filme de fato, queira ou não Coutinho pensar nele desta maneira, é o fato dele possuir um corte, de ter sido cuidadosamente montado. Por esse cuidado, mesmo que entendamos aquilo que Coutinho afirma ter sido um trabalho “nada ideológico”, tentando respeitar a lógica da programação da TV que ele presenciou ao longo das 19 horas, fica a pergunta: é possível uma montagem ser não-ideológica? Me parece claro que não, a não ser que reduzamos a idéia de ideologia à da expressão de uma doutrina específica. No entanto, é claro que, ao escolher os ritmos, pontos de junção e de corte, imagens significativas, variedade ou repetição de temas, Coutinho está expressando algo, que é o seu olhar sobre um dia de programação da TV brasileira - olhar este que não será jamais desprovido de ideologia, mesmo que seja desprovido de mensagem clara.

E é ai que podemos sim perceber algumas coisas que Um Dia na Vida afirma - e que talvez sejam todas constitutivas da nossa televisão, mas não deixam de ser sublinhamentos desta desejados por Coutinho. É o caso da reiterada sobreposição entre entretenimento e consumo (os anúncios de produtos infantis na manhã, a hiperpresença do merchandising na tarde); a auto-fagocitose radical da ficção televisiva (onde paródia e produto original já se tornaram completamente indistinguíveis); a presença da mulher como balizador maior de tudo que é pensado na linguagem da TV; a mistura de registros entre a informação, a política e a religião (e nisso é particularmente forte a escolha – essa sim radical, e única intervenção autoral na imagem – do plano final do copo d’água sem som, à espera da intervenção divina, no Fala Que Eu te Escuto). Em suma, se isso tudo está na tela da nossa TV todos os dias, está particularmente ressaltado em Um Dia Na Vida, que não é apenas um dia qualquer na TV, embora o seja. É um dia qualquer na TV, segundo visto e registrado por Eduardo Coutinho. Não será seu desejo de diminuir (saudavelmente) a importância de seu gesto autoral, nem a sua própria “comercialidade” como produto do cinema brasileiro (afinal por que estava lotada a enorme sala do Livraria Cultura, e por que ficaram quase todos esperando um debate se não pela presença de Coutinho?) que conseguirá diminuir isso que é o fato constitutivo deste gesto artístico – que, afinal, mais do que a objeto em si, é o que constitui uma obra.

Outubro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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