Um Verão Escaldante
(Un Été Brûlant),
de Philippe Garrel (França/Itália, 2011)
por Filipe Furtado
Não
podemos mais ver O Desprezo
Um Verão Escaldante se abre com
o suicídio de um dos seus protagonistas. Existem, afinal,
dois tipos de protagonistas nos romances condenados de Garrel:
os suicidas e os sobreviventes, que são ainda mais danados
por perdurar. Não será diferente aqui, apesar de
estarmos, assim como em Já Não Posso Escutar
mais a Guitarra, num filme bifurcado: nele revíamos
o romance de Garrel e Nico (tema fantasma de vários de
seus filmes) pelo ponto de vista do seu muito mais aprazível
casamento posterior; aqui, vemos o encontro de dois casais em
estágios muito diferentes romântico e social. Podemos
dizer que o teorema que Um Verão Escaldante propõe
é menos o de um casamento condenado do que deste flerte
condenado entre dois pares.
“Frederic está morto, ele era meu amigo”. As primeiras palavras que ouvimos – e este é um filme em que a dura precisão dramatúrgica segue em completo contraste com o prazer sensorial das suas imagens – escancaram uma impossibilidade, uma relação que só pode ser contemplada à distância. Um Verão Escaldante é um dos filmes mais teóricos de Garrel – até seu uso de atores é cuidadosamente delineado, com o casal Louis Garrel e Monica Bellucci sugerindo zumbis, refilmando o velho romance condenado garreliano, contrastados com as presenças mais naturais e desprovidas de contexto de Jerome Robart e Céline Sallette. Este lado teórico muito pensado também reflete nas frequentes referencias a O Desprezo, de Jean-Luc Godard. Esta lá a Cineccita ainda de pé e cada vez mais irreversivelmente insignificante; Monica Bellucci como uma Bardot contemporânea; a relação entre arte e comércio delineada com precisão ainda maior do que no filme de Godard (a começar pela constatação inicial de que o herdeiro Frederic tem o campo aberto para a arte, enquanto o amigo Paul precisa fazer pontas em filmes ruins). Estas referências todas não estão ali por um capricho cinéfilo, mas porque é do espaço entre O Desprezo e Um Verão Escaldante que Garrel procura dar conta. O Desprezo está para Um Verão Escaldante como A Odisséia estava para o longa de Godard: se ali a cultura e os deuses gregos pareciam observar serenamente a tragédia humana que o cineasta franco-suiço desencadeava, aqui é a ideia do tal cinema moderno dos anos 60 que realiza o mesmo olhar – muito mais doído porque, para Garrel, ele não é uma abstração, mas algo vivido com muito força.
As referências a O Desprezo também levam
Garrel a filmar em cores pela primeira vez desde O Vento da
Noite, de 1999. Os raros filmes coloridos do cineasta tendem
a ser mais diretos, menos abstratos e mais voltados para sua dramaturgia
do que os seus habituais filmes e preto e branco – algo
que se repete aqui, e deve-se dizer que o trabalho de Wily Kurant
é essencial, ao lado das performances de Robart e Sallette,
para entrecortar o amargor que Um Verão Escaldante
apresenta. As
cores quentes de Kurant emprestam ao filme uma volúpia
que vai contra a história de zumbis que está no
seu centro. Enquanto tudo na dramaturgia de Um Verão
Escaldante refluxa na negação da representação
(Frederic se recusa a pintar a esposa e lhe recusa o direito a
existir como imagem de cinema; mesmo Paul e Elisabeth precisam
fugir dos pequenos papeis em maus filmes), as imagens de Garrel
e Kurant vão no caminho oposto, se impõem como uma
energia e sensualidade própria. As duas sequências
mais memoráveis do filme caminham nesta direção:
primeiro Angele dança numa festa sobre o olhar ciumento
de Frederic (e aqui, por um único momento, Garrel permite
a Monica Bellucci existir por si própria); mais tarde,
um Frederic desolado abandona as filmagens da esposa e caminha
por restos de cenários de uma Cinecittá abandonada.
Em ambas sequências, o mesmo sentimento doentio é
expurgado, primeiro pela força do corpo e depois pela do
espaço cênico, de uma forma que somente o cinema
seria capaz de produzir. Esta imagem da Cinecitta abandonada não
deixa de ser central para o projeto de Garrel aqui. Poucos espaços,
afinal, são tão simbólicos da relação
entre cinema de autor do pós-guerra e a industria cinematográfica
quanto o velho estúdio italiano (assim como poucos filmes
encerram este casamento melhor quanto o blockbuster maldito
de Godard), e Um Verão Escaldante está
sobretudo interessado em radiografar o que esta relação
significa em meio a diluição da cultura francesa
nos tempos da comunidade europeia.
É útil lembrar que, a despeito dos press-releases
frequentemente venderem Philippe Garrel como um herdeiro da Nouvelle
Vague, ele sempre esteve muito mais próximo de ser um sobrevivente
dela (se Garrel é herdeiro de alguém, seria de Murnau
ou Epstein, e não de Godard; e se tem afinidade com cineastas
do período, certamente esta seria com Warhol, e não
com cinema francês da época). É uma distinção
importante, porque é deste ponto de vista de sobrevivente
que longas como Um Verão Escaldante inevitavelmente
partem quando lidam com a história. Quando
ignoramos que este é um filme de um sobrevivente (assim
como quando usamos a lógica do comércio do star
power e assumimos que este é um filme sobre relação
de um casal, e não sobre a relação entre
dois casais), corremos o risco de perder muito do que torna Um
Verão Escaldante notável. Quando vemos Louis
Garrel a vagar pela Cinecitta, um pouco como Piccolli fizera quase
50 anos atrás, já não é a cultura
grega que o assombra, mas a cultura européia do pós-guerra,
cujo otimismo naufragou numa ideia de pan europeísmo na
qual a balança entre os Jack Palances e Fritz Langs se
desequilibrou de vez. Um Verão Escaldante busca
esta imagem de Godard não por nostalgia, mas por constatação.
Ao contrário de outros cineastas geracionalmente próximos
(pensemos em Guédiguian que recentemente esteve em cartaz
por aqui), o Garrel de Um Verão Escaldante tem
pouco interesse nos prazeres do passadismo ou de congratular a
sua plateia ao dividi-lo com ela (basta pensarmos no belíssimo
final e no papel do avô de Frederic nele); pelo contrário,
seu cinema é animado pela mesma revolta de sempre. Garrel
como sempre é didático, apresenta sua radiografia
como um dado que é necessário não se aceitar
(que é onde ele se diferencia radicalmente de seus pares).
Como sempre em Garrel, a política é uma questão de cultura e de um casal (ou no caso, dois). De certa forma, a equação de Um Verão Escaldante surge da dúvida se é possível pegar o ar blasé de Louis Garrel, tão diluído e vulgarizado por tantos outros filmes, e devolver-lhe um valor em si. É o mal-estar de Frederic com a representação da mulher que desencadeia o drama; um mal-estar pessoal que se dobra num mal-estar geral de Paul e Elisabeth com sua própria presença no filme dentro do filme. O grande ato de Um Verão Escaldante é buscar na sua constatação a possibilidade de uma imagem que quebre este mal-estar, uma imagem justa que não seja nem passadista nem apaziguada. É preciso encontrar uma imagem que ainda permita a revolta.
Junho de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |