Vôo United 93 (United 93),
de Paul Greengrass (EUA, 2006)
por Paulo Santos Lima

A filmagem do marginal

A certeza geradas pelas imagens do ataque ao World Trade Center, naquela narrativa espetacular de cinema de ação, com aviões arrebentando-se e fazendo a ruína das torres gêmeas, contrasta com o mistério sobre a desventura do 757 da United Airlines, seqüestrado e supostamente “derrubado” pelos passageiros antes de atingir seu alvo, e cujo conhecimento nos veio através de relatos orais veiculados na mídia. Num tempo onde as imagens freqüentam, aos fluxos e pelos mais variados meios, o nosso cotidiano, não é estranho que sua ausência gere uma marginalidade ou, mais ainda, uma não-existência. Assim, o ataque aos edifícios seria real ao passo que o seqüestro do vôo 93 seria nada mais que uma lenda.

Paul Greengrass torna a lenda uma realidade na tela, com Vôo United 93. Ele torna, também, relevante uma história oral, uma vez que, hoje, é só assim que os relatos falados ganham expressividade: vertidos em imagens. Foi às fontes, querendo a “realidade” dos fatos (como o próprio diretor disse à imprensa, que, por sua vez, comentou sobre o aspecto “documental” do longa). O resultado seria um relato heróico, sobretudo porque os familiares das vítimas foram as grandes “testemunhas” do ocorrido – e é comum, nesse caso, que haja uma mitificação das ações dos passageiros, que supostamente peitaram os terroristas. Um heroísmo que a CNN e a FoxNews, claro, compraram, fazendo deles kamikazes de uma causa nobre (no caso, salvaguardar o parque de diversões político norte-americano: Casa Branca, Pentágono, enfim, Washington DC).

Mas Greengrass, no enorme fluxo de imagens-informação, foge do heroísmo e constrói um discurso sobre a perplexidade. A perplexidade do momento, da captação da ação em tempo real. Greengrass trabalha com imagens instáveis – mais pulsantes que as de Supremacia Bourne – construindo cenas que parecem surgir em tempo real, no calor do momento. As câmeras participam dos acontecimentos encenados olhando desde o abastecimento do avião à prosa do comissariado de bordo, da aflição dos terroristas à histeria da equipe de terra que não consegue compreender o que está acontecendo ali. Voltando à questão do termo propagado pela imprensa (“documental”), Greengrass consegue, com a câmera-na-mão e inclusão de não-atores (técnicos de vôo, militares), uma certa semelhança com o cinema direto, num estilo vizinho ao daquele com que Robert Drew captava sem interferir na ordem dos acontecimentos. Porém, é claro que tanto Drew (escolhendo o que filmar e o quanto o filmado ficaria na tela) quanto Greengrass (fazendo uma obra de ficção e preparação prévia) não chegam à tal “pureza do real”.

A lógica do filme é sábia. Vôo United 93 é um grande relato audiovisual sobre a incapacidade de compreensão em um mundo que perde a consonância entre signos e significados, onde a crença numa ordem inerente das coisas cai (literalmente) por terra. No filme, a reação das autoridades políticas, militares e dos aeroportos é a mesma dos personagens de Guerra dos Mundos, de Spielberg: desorientados, ignorantes à causa dos acontecimentos, os homens só sabem que correm um grande perigo – um perigo que atenta, sobretudo, contra o mundo como palco de uma grande narrativa organizada por um roteiro prévio, livre do inesperado do acaso. Greengrass, portanto, não mentiu quando disse, nas entrevistas, que buscou a realidade dos acontecimentos. Seu filme entra em total freqüência com o que aconteceu naquele 11 de setembro na medida em que representa o impacto daqueles acontecimentos desconectados, sem aviso prévio. A câmera-na-mão é fiel à ação, farejando o ar atônito daqueles rostos comuns, a avalanche de dados que só amplificava a impotência das autoridades em compreender e reordenar aquele novo mundo que lhes era apresentado.

Curioso é que Vôo United 93, no conjunto, assemelha-se a um grande thriller, algo que está claro na trilha sonora que amarra toda a história e na preparação prévia ao espectador, introduzido informações que desenvolverá até o clímax que nomeia o filme. As seqüências, contudo, seguem uma mesma freqüência, num socialismo de abordagem e relevância entre todas as cenas na trama. O levante dos passageiros contra os terroristas dura somente alguns minutos, entrecortados pela montagem que registra a simultaneidade de acontecimentos (como a sala de controle aéreo), com uma câmera nada diferente daquela que nos apresentou a inoperância dos homens em terra.

Vôo United 93 escapa de sua própria armadilha: fala sobre um evento sagrado ao imaginário norte-americano utilizando uma matéria-prima absurda (informações pescadas da emoção, verdades relativas, suposições) sem cair na inevitável mitificação. Parte da fabulação para chegar ao que houve de mais verídico na fatídica data: o choque diante do imprevisto. A cena que melhor dá conta disso é aquela onde o chroma key mostra o ataque das torres gêmeas pelo vidro da sala de controle, e os operadores de tráfego arriscando interpretações sobre a cena como se estivessem vendo um filme na tela scope: uma imagem que, em seu primeiro instante, ainda está livre de significados. Não à toa, o longa termina sem respostas, com a mesma tela escura com a qual ele começa. O vôo 93 da United (o fato, não o filme) continua na sua marginalidade, menos significado e mais evidência de que, sem o peso simbólico, espetacular e construtor de imaginário coletivo (como o do WTC desmoronado), nenhuma imagem pode forjar uma verdade mítica.


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