Amor Sem Escalas (Up in the Air),
de Jason Reitman (EUA, 2009)
por Fabio Diaz Camarneiro

A ditadura da eficiência

Para bom entendedor, a abertura de Amor Sem Escalas diz muito: os créditos do filme surgem sobre imagens de várias regiões dos EUA vistas do alto, do ponto de vista de uma aeronave, ao som de “This land is your land”. Para além de uma espécie de comédia romântica às avessas (algo que o título em português tenta reforçar), o filme de Jason Reitman trata de um país (os EUA) em meio a uma crise econômica. Essa crise está no cerne do emprego de Ryan Bingham, personagem de George Clooney, que precisa viajar durante praticamente todo o ano para demitir funcionários de outras empresas. Visto com certo distanciamento, Clooney parece interpretar uma espécie de “homem virtual”: onipresente (pode estar rapidamente em todas as partes do país), infalível (age com a precisão de um relógio quando dentro de um aeroporto), imaterial (parece não possuir nem endereço fixo, nem passado, nem história).

Ao apresentar esse personagem, o filme também assume a linguagem que representa, no cinema, esse desejo de um ideal virtual: cortes rápidos, uma narração em off, velocidade. Tempo e espaço em constante movimento, transformados em coisas que podem ser superadas pelo poder da máquina cinematográfica. Mas esse “homem virtual” tem também suas contradições. Uma delas fica evidente quando seu estilo de vida passa a ser ameaçado pela possibilidade de seu trabalho passar a ser feito online, pela internet. Será que a internet representa a extrema liberdade (a promessa de poder estar em qualquer lugar do mundo em qualquer hora) ou aprisionamento (o internauta termina sempre preso ao mesmo lugar: o teclado de seu computador)?

A resposta a essa pergunta está em números, tabelas, gráficos. Uma ditadura da eficiência, que nem sempre parece conseguir os resultados desejados. Fazendo um exercício de raciocínio, podemos dizer que essa cultura tecnocrata está na base da recente crise econômica norte-americana. Mas o filme não chega a fazer diretamente essa associação, e a jovem tecnocrata que aparece no caminho de Clooney é apresentada como ingênua, mas bem intencionada. Simpática, apesar de inexperiente. Ele servirá de mentor para ela. Em troca, ela tentará ensiná-lo a ter alguma “vida sentimental”. Se existe algo de comédia romântica em Amor sem Escalas, está nessa expectativa de que o personagem deixe de lado suas eventuais aventuras sexuais, seja “fisgado” e coloque uma aliança no dedo (e não deixa de ser irônico que seja George Clooney, talvez quem mais hoje represente a figura do solteirão “bon vivant”, interprete esse personagem.)

A situação é um tanto esquemática: de um lado, a possibilidade do casamento. Do outro, todas as obsessões contemporâneas: viagens intermináveis, cartões de crédito, milhas gratuitas, planos de fidelização... Uma das cenas mais sensuais do filme lida com essas questões ao colocar Clooney e Vera Farmiga em um bar, entre um drinque e outro, brincando um com os cartões (de crédito, de vantagens, de programas de fidelidade) do outro e transformando tudo em um jogo de conquista. Poder de consumo é poder de sedução. E daí surge outra contradição: se o personagem de Clooney tem esse poder (dinheiro e sexo), é porque demite outras pessoas, ou seja, é porque lhes retira o salário, a estabilidade, os planos de vida. Trata-se de uma relação vampiresca. Para sobreviver no trabalho sem imaginar a si mesmo como um monstro, o personagem de Clooney gosta de pensar que, ao invés de estar tirando alguém do emprego, está lhe dando uma “nova oportunidade”. Um raciocínio que certamente poderia entrar para um dicionário de “eufemismos contemporâneos” (da mesma forma, hoje em dia nada mais é “usado”, mas “semi-novo”).

O filme parece inteligente ao fazer um diagnóstico das contradições de seu personagem (e do país em questão), mas é extremamente ingênuo ao apontar soluções. Parece apostar na existência de um mundo em que todas as diferenças podem conviver muito bem, obrigado. Esse mundo é a família. A família, ao invés de entrar como mais uma peça do jogo, torna-se a chave para sua resolução. Amor sem Escalas parece acreditar que não importa o quanto o mundo pareça estar de cabeça para baixo, a resposta para os problemas é um lar bem estruturado. A irmã de Clooney está prestes a se casar. Sem dinheiro para viajar, ela resolve fazer uma montagem de fotos dela mesma em diversos cenários do país. A família se transforma no inverso de Clooney: além de “presos” a um estado (Wisconsin), eles não pensam na vida como um “eterno presente”, em que só vale o momento atual. Pelo contrário, sabem que vão envelhecer e morrer, são obrigados a lidar com o medo de tomar atitudes que tenham consequências indesejadas no futuro. Algo um pouco mais próximo do que se poderia chamar de “uma vida real”, sem glamour. Nesse momento, o título original do filme parece fazer mais sentido. Estar “up in the air” é também estar apartado da vida terrena, diária, aparentemente livre dos problemas comezinhos, das pequenas dúvidas. É viver na montagem rápida do videoclipe sem tentar prestar atenção para quando e onde se está. Estar “up in the air” é a promessa de ser jovem para sempre (novamente, a escolha de Clooney para o papel parece carregada de ironia) – mas é também uma espécie de morte.

Torna-se radical, porém, o choque entre a esperteza e a ingenuidade do filme, entre a frieza com que aponta os problemas e a maneira simplista de esboçar suas soluções. Na cena que resume o filme, George Clooney olha para um mapa dos EUA preenchido com fotos de sua irmã com o noivo. Parece que, nesse país continental, feito de milhares de pessoas, o personagem só consegue ver a si mesmo. Clooney é um personagem tradicional e recorrente: o mentiroso elegante, que vive de contar aos outros uma lorota. O problema é que ele passa a acreditar na própria mentira. Amor sem Escalas tentou se aproximar da situação histórica que serve de pano de fundo para a trama (ou talvez tenha tentado apenas criar um verniz publicitário com sabor de “veracidade”) ao colocar anúncios em várias cidades americanas para que pessoas que tinham sido realmente demitidas gravassem os depoimentos que aparecem no filme. A dúvida que não pode ser respondida é se esses depoentes concordariam com as ideias de Jason Reitman.

Fevereiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta