Utopia e Barbárie,
de Silvio Tendler (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
Senta,
que lá vem a História
Já quase no final de Utopia e Barbárie,
o uruguaio Eduardo Galeano surge em cena e diz que “a História
é uma senhora misteriosa”, querendo ilustrar o quanto não podemos
nos arvorar de entender seus desmandos em plena atividade desta.
O problema é que esta frase, de resto inteligentíssima,
parece completamente em desacordo com todas as operações que Utopia
e Barbárie tenta colocar em funcionamento ao longo de sua
duração, onde sobra muito pouco espaço para qualquer sentido
de mistério na sua narração de aproximadamente
70 anos de História.
De fato, seja no seu uso de intertítulos com nomes de capítulos,
seja na forma como estrutura seu discurso, o filme de Silvio Tendler
se apresenta como um resumo da história do mundo entre a II Guerra
e o momento atual. Passando por momentos tão complexos e distintos
como a Guerra Fria, o Maio de 68, o Vietnã, a ditadura brasileira
ou as Diretas Já, o filme o faz com a rapidez e a simplicidade
que talvez pudéssemos esperar do diretor que havia nos
dado Glauber – Labirinto do Brasil, filme que já usava
muitos dos mesmos expedientes (muitas entrevistas notáveis, arrumação
cronológica e em subcapítulos, etc) para “resumir”
(o termo parece especialmente adequado) algo impossível de ser
resumido – no caso anterior, a obra e a figura do cineasta mais
representativo da história do cinema brasileiro; aqui, a trajetória
sócio-política dos momentos-chave da história
recente do Brasil e do mundo.
E
aí, por mais que possamos admirar a indubitavelmente longa e cuidadosa
pesquisa de imagens e sons, ou a capacidade de entrevistar algumas
pessoas realmente importantes desse período (como o General Giap,
figura-chave do conflito do Vietnã), isso tudo acaba valendo de
pouco se a utilização deste material dentro da montagem do filme
resulte tão quadrada, tão discursiva. É curioso, nesse sentido,
notar como Tendler usa, entre algumas outras, duas obras cinematográficas
para ilustrar momentos de sua narrativa. Por um lado, ele coloca
em cena bem rapidamente trechos de O Fundo do Ar é Vermelho,
de Chris Marker (a quem, aliás, também é dado a dúbia honra de
assinar a epígrafe deste filme), um dos maiores filmes de arquivo
feitos ao longo do século XX. Por outro, usa extensamente, quase
como se fosse mais um dos depoimentos, diálogos e cenas de As
Invasões Bárbaras, de Denys Arcand. O fato de que não se poderia
pensar em dois cineastas e obras mais distintas do que as de Marker
e Arcand até poderia funcionar a favor do filme de Tendler – pois
da fricção entre dois opostos sempre pode sair alguma fagulha
de pensamento interessante –, mas a forma como os filmes entram
em cena e se relacionam com o restante do filme deixam claro qual
deles está mais perto de ser uma real influência na maneira de
pensar e montar o discurso deste filme aqui.
Porque a verdade é que a posição
que Tendler toma ao olhar para a História em Utopia
e Barbárie é bastante semelhante à de Arcand. Pois
se há algo que sobressai na múltipla experiência do filme ao tentar
resumir a trajetória das utopias do século XX é um inegável saudosismo
de quando as questões eram mais simples, de quando era mais fácil
saber quando se estava do lado certo e defendendo o quê de quem.
Não se quer negar aqui que o decadentismo niilista de Arcand passa
longe do que percebemos principalmente no final do filme de Tendler
(um carinho pelos protestos antiglobalização, etc), mas suas diferenças
radicais de um Marker se impõem ainda mais na sua maneira
simplista de colocar em cena as complexidades dos tempos pós II
Guerra. Afinal, O Fundo do Ar é Vermelho, mesmo realizado
em plena ebulição de 1977, já era um filme que entendia e abraçava
os dilemas do mundo justamente nas suas dificuldades de resumir,
de compreender, de criar um discurso a partir deles – ou seja,
tudo aquilo que Utopia e Barbárie não faz. Não por acaso
eu mesmo escrevi na Contracampo, sob o efeito de ver esta obra
de Marker há mais ou menos sete anos: “Não
há nas 3 horas de filme uma só argumentação rasteira ou meramente
expositiva”. Tudo no filme de Marker é dúbio, impossível de afirmar,
confuso. Ali sim, a História é uma senhora misteriosa,
e o olhar para ela sempre extremamente pessoal.
É
verdade que Silvio Tendler até tenta incorporar um pouco dessa
subjetividade em seu filme, colocando aqui e ali uma foto sua
nos momentos históricos que ilustra, ou usando uma narrativa em
primeira pessoa lida por Chico Diaz, Leticia Spiller ou Amir Haddad
(diga-se que, embora pudesse ser uma boa idéia essa primeira pessoa
quebrada em outras, o uso destes atores e diretor na leitura dá
ao texto uma excessiva dramaticidade que quebra qualquer efeito
de distanciamento buscado na operação). A primeira
pessoa aqui parece indicar muito menos uma impossibilidade de
ser objetivo frente ao mundo, e muito mais uma vaidade nostálgica
ao se colocar no centro da História que se narra (algo visto no
subtítulo “Ter 18 anos em 1968”). Ao fim e ao cabo, talvez Utopia
e Barbárie encontre seu melhor resumo (e parece justo tentar
resumir em uma frase um filme que se arvora resumir quarenta setenta
anos em duas horas) nessa idéia: “foram fabulosos os tempos em
que eu vivi”. E se esta é uma constatação humana das mais compreensíveis,
e possivelmente até comovente, para se tornar discurso
cinematográfico de fato potente ela precisa de bem mais que a
sustente.
Maio de 2010
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