história(s) do cinema brasileiro
Novas idéias, velhos dilemas O
Vale Cultura, afinal, vale para quê? por
Lila Foster Em discurso durante o lançamento do Vale
Cultura (50 reais disponibilizados para gastos com cultura, via isenção fiscal,
para trabalhadores que ganham menos de 5 salários mínimos), o presidente Lula
insistiu nos benefícios ao trabalhador que, uma vez aprovado o projeto, poderá
ter acesso a outros bens culturais, livrando-se assim da televisão, cuja programação
o presidente considera ruim. O espantoso nessa declaração, além da sinceridade,
é que ao mesmo tempo em que o governo tenta reverter um processo de elitização
da cultura, ele se exime de qualquer responsabilidade ou poder sobre o que é essa
TV de qualidade duvidosa. Sobre a má qualidade da programação da televisão brasileira,
o governo ainda não conseguiu agir em direção à sua melhoria e democratização.
As discussões sugeridas pelo projeto da Ancinav e a chegada da transmissão digital,
que politica e tecnicamente poderiam ter possibilitado abertura de novos canais
e novas programações, tiveram os seus rumos totalmente determinados, com nenhum
tempo para debate das questões e conseqüências envolvidas, pelos grandes canais
e por setores do governo. As forças em jogo impossibilitaram totalmente a abertura
dos canais para a discussão das suas programações. Uma resposta a esta dificuldade
foi a criação da TV Brasil, projeto que tentou reverter a impotência diante das
tentativas de regulamentação do setor, mas que agora também se vê diante de uma
crise. Mas, quando Lula assume no mesmo discurso de lançamento
que não sabe “como fazer uma política de distribuição de cinema” e que precisa
“fazer um grupo para discutir isso melhor", ele toca em um dos pontos nevrálgicos
da situação do cinema brasileiro atual, que sua gestão tem tentado encarar de
diversas formas, seja por iniciativas como a Programadora Brasil, seu elo com
os Pontos de Cultura, o fortalecimento dos cineclubes e diversos festivais de
cinema por todo o país: a formação de um circuito alternativo de distribuição
e difusão, que tenta chegar às periferias e às cidades pequenas, além de difundir
o cinema brasileiro como um todo. Com o predomínio dos “filmes de mercado” brasileiros
no circuito e com um excesso de produção que compete no pequeno espaço do circuito
de arte e não tem onde passar, o clamor agora é pela ampliação do circuito de
exibição e pelo barateamento dos ingressos. O problema que o governo busca enfrentar
é duplo. O primeiro é como democratizar a distribuição e exibição dos filmes produzidos
no Brasil, ou seja, como possibilitar o acesso à produção incentivada dos últimos
anos e viabilizá-la economicamente? O segundo é como tornar o consumo de filmes
brasileiros no cinema mais democrático e acessível? É aí que se encaixa o projeto
do Vale Cultura. Para o cinema, o discurso envolvido no projeto vai um pouco além
da democratização. Mobilizado principalmente por Luiz Carlos Barreto, o Vale Cultura
seria uma forma de injetar dinheiro na “indústria”. A equação do produtor também
é simples: o mal do cinema é que ele está caro, poucas pessoas podem comprar o
ingresso e por isso os filmes não dão público nem dinheiro. O Vale Cultura chega
então para salvar a lavoura, é dinheiro em caixa garantido e pilar da nossa industrialização.
É nesse ponto que a história se complica. Não existe solução
fácil para o problema em que o cinema brasileiro atual se encontra, a equação
é dificílima. Se o acesso ao cinema brasileiro e a produções independentes é tão
importante, seria bom repensar o papel das TVs comerciais na difusão da produção
independente e na abertura da sua grade de programação. Do ponto de vista de sustentação
do filme brasileiro no mercado, nada garante para onde irá o dinheiro do Vale
Cultura (a previsão no anúncio do projeto era de R$ 7 bilhões). Onde esse dinheiro
vai ser investido, se o problema do acesso à cultura não é somente financeiro?
O que garante que esse dinheiro vai para produtos e eventos brasileiros? Fazendo
as contas, por que um beneficiário do projeto, imaginando um casal com um filho,
iria gastar sua cota mensal indo uma vez ao cinema (incluindo gasto com transporte,
duas inteiras e uma meia) se é bem mais barato comprar três DVDs? Os espaços culturais,
as salas de cinema, os teatros e os museus se concentram nos centros das grandes
cidades e em shoppings, estão distantes das periferias e das pequenas cidades.
Se o presidente reconhece isso no mesmo momento em que lança um projeto que disponibiliza
dinheiro para o trabalhador consumir exatamente produtos desse circuito, não seria
bem melhor direcionar esse dinheiro para a construção e manutenção de salas de
cinema e teatros? Ou para o fortalecimento de uma rede de exibição alternativa
que já existe em centros culturais, universidades e museus? Em
termos de sustentação dos produtores culturais, também não faz nenhum sentido
o governo lançar um projeto de isenção fiscal, se no final do ano passado sancionou
a Lei Complementar nº 128/08, que retirou as empresas de produção cultural do
Simples, aumentando a carga tributária de 6% para 17,5% e dificultando, com isso,
a viabilização financeira das empresas do setor. Quer dizer, o discurso parece
muito frágil diante da realidade da cultura no país: a TV que é popular ninguém
pode tocar, os produtores culturais sofrem aumento de tributação, diversos filmes
brasileiros têm dificuldade de chegar ao circuito exibidor, as periferias e as
pequenas cidades não tem infra-estrutura cultural. Idealmente
o Vale Cultura permitirá que as pessoas possam ir ao teatro, ao cinema, ao circo,
show de música e dança, comprem livros e DVD. Isso, evidentemente, é um benefício,
mas não existe nenhum dado quanto a forma que esse consumo vai se dar e que critérios
entrarão em jogo para decidir quem vai ter a maquininha para aceitar o Vale Cultura.
Pode ser que o vale lote teatros, mas pode ser também que ele lote as fileiras
do último blockbuster americano. E aqui não entra a medida de valor sobre
o que se deve ou não assistir, mas cabe perguntar por que mais um projeto com
isenção fiscal, com tanto projeto de difusão cultural no Brasil que funciona sem
recursos? Em relação ao cinema, mesmo que se amplie o público do cinema brasileiro,
isso não forma a base de nenhuma indústria, afinal, não seria mais um incentivo
do governo e, portanto, mais uma solução fora do mercado? Isso não seria ignorar
a dificuldade que o cinema brasileiro tem encontrado para chegar ao circuito de
exibição? Independentemente do resultado do projeto, se vai
ser aprovado ou se a cota vai aumentar para 100 reais como está sendo discutido,
o vínculo entre o Vale Cultura e a indústria cinematográfica parece totalmente
deslocado e é uma solução muito mais discursiva do que prática. O Brasil tem se
digladiado durante anos na tentativa de fortalecimento de uma indústria cinematográfica
no país e, quase sempre, se afundou no ideal e nos discursos. Achar que o Vale
Cultura é a solução é ignorar toda essa história e não se questionar sobre o quanto
estamos dispostos a pagar para termos uma indústria de cinema no Brasil. Ou até
mesmo se perguntar: é possível uma indústria de cinema no Brasil? Agosto
de 2009
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