O
Romance do Vaqueiro Voador, de Manfredo Caldas (Brasil,
2006) por Eduardo Valente O
mantra do candango
Desde o começo, o filme de Manfredo Caldas expõe
de maneira bem clara as cartas de seu jogo: ao “adaptar” para a tela do cinema
o poema-cordel de João Bosco Bezerra Bonfim, o diretor propõe em O Romance
do Vaqueiro Voador um ensaio audiovisual (a categoria parece dar bem mais
conta do que é o filme do que retomar a cansada discussão da fronteira entre registros
ficcionais e documentais, etc e tal) sobre a presença fundante (embora preciso,
infelizmente, o termo recebe neste caso quase um sentido de trocadilho) do migrante
nordestino na constituição de Brasília. Há algo de incrivelmente sintético nesta
opção, pois de fato o espectador pode concluir que “sabe onde o filme vai” depois
de cinco minutos assistindo – e no entanto a repetição constante de “temas” que
o filme vai desdobrando se adeqüa bastante bem ao formato da poesia de cordel,
especialmente na maneira como o filme a usa, repetindo e voltando às estrofes
principais seguidamente. Com isso, o Romance ganha, aos poucos, um quê de mantra,
que parece poder continuar pelos seus quase 80 minutos, ou por toda a eternidade
– o que não deixa de ser, também, um comentário curioso sobre o tema de que quer
falar.
Para a constituição deste ensaio serão essenciais
ao filme de Manfredo Caldas tanto o uso de materiais audiovisuais anteriores a
ele (onde o filme de Vladimir Carvalho, Brasília Segundo Feldman surge
como inspiração e fonte principal ao mesmo tempo – mas há lugar também para fotos
ou mesmo trechos de Vidas Secas) como a exploração do presente da paisagem
geográfico-arquitetônica da capital federal. No entanto, não podemos parar na
imagem ao falar do filme, uma vez que o som é figura central na narrativa. Não
falamos aqui apenas da presença no centro do trabalho da palavra falada em forma
de poema, mas também do cuidadoso trabalho de desenho sonoro que ocupa o filme
com várias camadas consecutivas de informação e que explora com atenção a espacialidade
da sala de cinema. É um filme que revela uma atenção ainda pouco comum no cinema
nacional à importância da experiência sonora (e não só da inteligibilidade). É
curioso notar, no entanto, como na sua forma o filme não deixa de trair um pouco
aquela que manifestadamente surge como uma das principais preocupações do poema-cordel
que o inspira. Pois o fato é que as palavras de Bezerra Bonfim revelam uma preocupação
constante com a questão da individualização do drama de um migrante, aquele que
cai naquele momento do alto da construção onde trabalhava e será em seguida apagado
da história. Afirmar sua história pessoal, humaniza-lo em suma, parece essencial
para o processo de não torna-lo apenas mais um número sem face, que é aquilo que
o torna invisível e dispensável. No entanto, o filme utiliza a figura de Luiz
Carlos Vasconcelos incorporando (e, de novo, o termo parece preciso e ao mesmo
tempo cheio de leituras) a persona do candango de uma tal maneira que o lemos
sempre como o representante na tela de um e de todos os migrantes nordestinos
– portanto, o tornando uma “entidade sem rosto”, onde o drama coletivo se sobrepõe,
de novo, à individualização. É verdade que o filme até consegue contrabalançar
de alguma forma o rosto unificante-metafórico de Vasconcelos, com a presença cativante
(e única) de um dos personagens entrevistados numa barbearia – mas a não-centralidade
desta figura pode ser constatada pela impossibilidade de descobrir seu nome mesmo
no site do filme. Se
não diminui as potências do filme, ao optar por centralizar a questão “do candango”
e não “de um candango”, O Romance do Vaqueiro Voador, paradoxalmente, ao
mesmo tempo em que amplia seu escopo e incisão, o faz um tanto às custas daquilo
que seus personagens morreram pedindo: a possibilidade de serem únicos. Maio
de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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