V de Vingança (V for Vengeance), de James Mc Teigue
(EUA, 2006)
por Eduardo Valente

Não é de surpreender que V de Vingança tenha despertado sentimentos distintos em vários espectadores e críticos, considerando que a história em quadrinhos na qual se baseia era um tanto polêmica quando as sua publicação, nos anos 80 – muito mais agora, uma vez que seu protagonista pretende dar início a uma revolução na sociedade em que vive a partir de procedimentos que incluem o uso de bombas contra prédios públicos. No entanto, o que é um pouco surpreendente é que todas essas reações que o filme tem despertado não somente fazem sentido, como o filme dá razão a quase todas elas. Trata-se de um curioso exemplar de cinema onde o argumento principal para se dar conta dele é o “lá isso é verdade, mas temos que ver também que, por outro lado...” Senão, vejamos:

De um lado, a crítica mais politicamente conservadora se dividiu entre os que consideram o filme um acinte e aqueles que notavam que o filme seria apenas falsamente revolucionário. Os primeiros, tomado seu ponto de vista, têm razão: o filme foi realizado, claramente, como um acinte contra eles, uma vez que em determinado momento, por exemplo, o personagem V (o referido revolucionário) vai dizer que “explodir um prédio pode salvar o mundo”; que “um homem sem medo de morrer é um homem livre” (homens-bomba palestinos, talvez?) ou que “a violência pode ser usada para o bem”. Nada mais esperado e coerente com o filme, portanto, do que esta primeira resposta conservadora.

A segunda, embora mais complexa, também tem seu ponto de vista bastante bem embasado no filme: na adaptação dos quadrinhos de Alan Moore saiu de cena, justamente, a filiação de V a uma ideologia anarquista (motivo pelo qual o nome de Moore, ele mesmo um anarquista, não consta nos créditos do filme), tornando-o um ícone revolucionário quase pop, com a mesma força de contestação, segundo os críticos, que uma camiseta de Che Guevara. Faz sentido: tomado literalmente, o desfecho espetacular do filme não tem nada de semelhante com o da história em quadrinhos (e não se trata aqui de pedir fidelidade narrativa e sim notar as opções políticas existentes nas alterações), onde víamos uma população em estado de rebelião selvagem e quase pré-História (portanto, tendo efetivamente desfeito as bases de sua sociedade). Nós temos ao final do filme um aglomerado que adora um ícone, um tanto acriticamente, e que parece apenas ter substituído um líder por outro (ainda que este, verdade, esteja morto). Numa lista de discussões na internet, foi feito um paralelo especialmente feliz entre a multidão que observa os fogos de artifício do final e os zumbis dos filmes de George Romero, que também eram “neutralizados” por explosões pirotécnicas. A revolução do V cinematográfico seria, portanto, falsa.

Por outro lado, houve vários críticos, eminentemente de esquerda, que elogiaram o filme por trazer à tona questões ainda mais pertinentes hoje do que nos anos 80, e que faz isso com eficiência cinematográfica inegável. Eles também têm razão. Num tempo em que a imensa maioria dos filmes voltados para o grande público investe cada vez mais na obviedade de diálogos e nas cenas de ação de montagem quase incompreensível, contando quase sempre com o torpor como única forma de contato com o espectador, V de Vingança apresenta uma quase saudosa volta dos diálogos ao primeiro plano narrativo de um “filme de ação” (usando o termo bastante genericamente), contando com discussões de ordem político-social como princípio básico do seu interesse. Além disso, é igualmente verdade que uma das mudanças que melhor funciona da HQ original para o filme é a substituição do rádio pela TV como forma de comunicação do governo totalitário, e especialmente pela transformação desta (a TV) menos num braço estatal por si e mais numa instituição independente que serve aos interesses deste estado (aqui a referência ao governo Bush é clara). Junto com a constante supressão dos direitos individuais que vemos em diversas cenas do filme, e com o tratamento ficcional da questão do medo como ferramenta básica de dominação, tratam-se dos momentos mais fortes do filme em termos narrativos, e algo que deve ser louvado neste cinema de grande público de hoje.

Há críticos, porém, que notaram que o filme tem uma forma quase desinteressante nos aspectos da narrativa visual e da construção da estrutura dos seus personagens, e eles têm toda razão também: no geral, os atores trabalham bastante mal no filme (Stephen Rea pouco mais faz do que o mesmo muxoxo o filme todo, John Hurt curte ao máximo a brincadeira de “eu já fui oprimido em 1984, agora eu sou o Grande Irmão” mas não dá grande interesse ao seu ditador enlouquecido, e Natalie Portman, com exceção de algumas cenas, torna sua Evey uma personagem banal), e o mesmo uso da palavra falada que elogiávamos logo acima, muitas vezes se torna um peso para o filme, que pára inúmeras vezes para que entendamos a trama em meio a incontáveis planos sem vida. Também a estrutura narrativa em histórias paralelas não funciona a contendo como acontece na HQ, e muitas vezes parece um tanto aleatória. Finalmente, e mais uma vez afirmando que não é uma questão de fidelidade narrativa: a totalidade dos personagens (desde V até o policial Finch, passando por Evey e pelo ditador mesmo, chegando ao “povo”) foi despida da imensa maioria dos seus aspectos contraditórios presentes na HQ que, se tornavam todos eles altamente complexos (e, de fato, possivelmente muito mais do que o filme poderia dar conta), uma vez eliminados em cortes radicais, tornam muitos deles completamente sem sentido (citemos a eliminação da história pessoal de Finch, a inclusão do passado “guerrilheiro” dos pais de Evey e sua inserção no “mercado de trabalho”, etc). Se o peso de um filme de ficção científica não precisa estar na verossimilhança, a coerência interna é algo sempre desejável, e neste sentido V de Vingança muitas vezes deixa a desejar.

Noves fora todos esses acertos das contraditórias recepções ao filme, o que sobraria, então? Sobra um filme de atrativos inegáveis (talvez o maior deles seja o magnetismo da figura de V, uma vez transformada em ser humano tridimensional, algo que podia realmente não ter funcionado, mas que imprime na tela com uma força incrível), de pertinência histórico-política difícil de negar (não só pela coragem de tocar em alguns pontos no meio de uma grande produção, mas principalmente por ousar encená-los visualmente, como a explosão do parlamento no final), mas que sofre tanto de suas deficiências narrativas (em muito devido aos cortes na história original – mal escolhidos e realizados) quanto de uma encenação eventualmente capenga e desinteressante. Principalmente, o que fica é a imagem de um filme com alguma força, mas que está longe de ser o divisor de águas no cinema que foi o original nos quadrinhos. Muito por conta, claro, da liberdade e “independência” do mercado que aquele tinha, podendo encontrar para o seu conteúdo altamente explosivo (sem trocadilhos) um contraponto estético-narrativo. V de Vingança não é um filme revolucionário – e isso independe de qual seja a política de V.


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