debate
Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra
(Brasil, 2005)
por Leonardo Mecchi
Tempo de Guerra, de lama e caos
O circuito exibidor tem se mostrado a cada dia mais impiedoso
com filmes que não se enquadram em um determinado nicho de mercado.
Com isso, temos alguns poucos filmes lançados com campanhas maciças
de publicidade e centenas de cópias, enquanto outros se batem
com mais 10 estréias por semana em busca das migalhas do público.
Nesse processo, muitos filmes acabam encerrando suas carreiras
comerciais sem terem suas propostas e questões devidamente discutidas
e analisadas.
Foi esse o caso de Veneno da Madrugada.
Lançado sem nenhum apoio de mídia, o filme foi criticado na estréia
por suas opções estéticas (em especial a fotografia excessivamente
auto-referencial de Walter Carvalho) e, em pouco mais de duas
semanas (tendo sido visto por apenas 2500 pessoas nesse período),
já havia sido expulso das salas de cinema – conseqüentemente retirando-se
das rodas de discussão de críticos e cinéfilos. Com isso, nos
parece que muito de seu potencial para análise e discussão acabou
não sendo explorado, e o filme foi vítima de uma invisibilidade
que tem se tornado cada vez mais comum, devido ao excesso de estréias
e ao encurtamento da carreira dos filmes nos cinemas.
Entre as questões que deixaram de ser discutidas,
está a opção por uma narrativa em “camadas”, que trabalha a questão
temporal de maneira não convencional. A questão do tempo é tão
importante para Ruy Guerra que o filme abre com um dos personagens
declarando que “se Deus fosse feito de tempo, também ele teria
perdido o sentido”. A história contada três vezes, com acontecimentos
e desfechos diferentes, não busca as interpretações usuais em
relação a filmes que trabalham com essa chave, como as visões
diferentes de um mesmo acontecimento central (caso de Rashomon,
de Kurosawa) ou a composição onde apenas um segmento narrativo
é verdadeiro e os demais são frutos de sonhos ou delírios (caso
de Cidade dos Sonhos, de David Lynch, por exemplo). Em
Veneno da Madrugada, cada núcleo narrativo é tão verdadeiro
e real quanto os demais, e se sobrepõem de uma maneira aparentemente
impossível e contraditória, mas plenamente justificável na proposta
do diretor, que se inspirou nas possibilidades da física quântica
para estruturar sua narrativa.
Para além da impossibilidade de uma apreensão
linear do tempo, tão comum em nossa pós-modernidade (e já exaustivamente
retratada pelo cinema), os três finais possíveis para Veneno
da Madrugada parecem apontar também para uma aposta do diretor
na autodeterminação de seu personagem, na possibilidade desse
personagem de tomar seu destino em suas mãos e escolher entre
vários caminhos possíveis através do conhecimento acumulado nas
diversas experiências. Em um momento onde o cinema brasileiro
tem insistido em um determinismo histórico (Quanto Vale ou
é Por Quilo?) ou numa resignação incapaz (Brasília 18%),
esse destino em aberto de seu personagem não deixa de ser uma
posição política de Ruy Guerra.
Percebe-se ali a continuidade do radical trabalho
de linguagem realizado em Estorvo. Em ambos os casos, a
própria linguagem cinematográfica pretende emular a sensação que
o meio produz sobre o indivíduo. No caso de Estorvo, a
fotografia repleta de contrastes e efeitos óticos, a montagem
não-linear, os diálogos numa mistura quase incompreensível de
português e espanhol, tudo contribui para transmitir a sensação
de estranhamento do personagem perante o mundo. Em Veneno,
embora com menos força, o efeito se repete: a fotografia monocromática,
“desgastada”, bem como o figurino e a cenografia buscando esse
mesmo conceito visual, reforçam a sensação de estagnação e decadência
daquele povoado, sentimento compartilhado pelo próprio Alcaide,
que se sente cada vez mais aprisionado, como um animal ferido
(no caso, pela dor de dente), prestes a explodir.
Ou seja, não se trata de uma estética narcisista
como propagado, mas sim de uma proposta a serviço de uma narrativa.
A lama, os bilhetes, o cheiro de podridão da carcaça no rio, essa
decadência generalizada atinge a todos os personagens. Do poder
religioso ao político, das famílias tradicionais ao representante
mais reles do povo, todos estão envolvidos. Cercados por milícias
e guerrilhas e assolados pela chuva ininterrupta, não há a possibilidade
de fuga: é preciso resolver, pelo bem ou pelo mal, os dilemas
e conflitos entre aqueles indivíduos e os grupos a que pertencem.
Ao contrário do apaziguamento das tensões entre classes proposto
pelas produções da Globo, em Ruy Guerra a tensão crescente e constante
torna o confronto inevitável.
O diretor opta também neste filme por uma narrativa
anti-naturalista, coisa rara no cinema nacional atual – especializando-se
que está em reproduzir na tela grande a linguagem televisiva,
espaço primordial do naturalismo – onde poucos cineastas além
de Guerra (podemos citar Carlão Reichenbach, Bressane, Sganzerla
e poucos mais) arriscam-se nessa proposta de tirar o espectador
de sua zona de conforto, do espaço prontamente identificável,
para lançá-lo em uma busca por novas referências e balizas dentro
do espaço diegético e não mais anterior a ele. Opção estética
e política, esse tipo de narrativa acaba sendo responsável também
por muitas barreiras frente ao grande público (como a dublagem
dos personagens, no caso de Veneno), o que explica em parte
as baixas bilheterias desses diretores. Tal opção se presta a
forçar uma nova relação do espectador com as imagens que lhe são
apresentadas. Não se trata de um universo puramente ficcional,
com regras e convenções pré-definidas, mas de um espaço com o
qual o espectador necessita interagir, tornando-o parte integrante
daquele espaço e, com isso, também ele suscetível aos efeitos
de tal ambiente.
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