Vênus Negra (Vénus Noire), de Abdellatif Kechiche
(França/Itália/Bélgica, 2010)

por Pedro Henrique Ferreira

Vênus NegraO limite da proximidade

Curiosamente, Vênus Negra segue tão à risca ditames e procedimentos do "cinema de arte" contemporâneo que chega a um ponto de indistinção entre o quão Abdellatif Kechiche adere substancialmente ao paradigma, e o quão, em realidade, o faz apenas para sabotá-lo. Este paradoxo é onde a obra encontra todo o seu mistério. Assim, observa-se um conjunto de cacoetes faz tempos adestrados: o espectador fica pendurado a um personagem vitimizado, em uma observação voyeurística do martírio de seu corpo com a proximidade de uma câmera trêmula, virgem de grande-angulares, curiosa por toda a espécie de excêntricidades materiais. A narrativa elíptica segue uma figura dominada por um mestre, e trata exatamente desta dominação, não abstendo-se de reportar exatamente ao ninho de vespa, ao recorrente assunto da colonização africana.

Mas o diretor franco-tunisiano faz destes recursos protocolares, já tão desgastados, o verdadeiro tema de seu filme. Relata um evento histórico e realiza uma biografia da vida de Saartjie Baartman (Yahima Torres), babá sul-africana que tornou-se atração de um circo de horrores na Europa exatamente pelo aspecto corporal curioso da tribo Hotentote. Acompanhamos os espetáculos que a ridicularizam e violentam, moral e fisicamente. Trilhamos eventos traumáticos (do batismo à prostituição) que açoitam de culpa uma longa tradição do pensamento francês contemporâneo - o "outro" inviolável, tornado objeto - perambulando por uma Europa que a trata sempre como objeto de diversão (popular ou aristocrática), pesquisa científica ou curiosidade sexual: com interesse, é verdade, porém sempre com um interesse que mantêm-se à superfície de seu físico singular.

Vênus NegraO vácuo é ainda mais exacerbado com a filiação do trabalho da atriz colombiana à escola de contenção e esvaziamento, onde o ator, no melhor estilo bressoniano, não expõe sentimentos humanos e serve como uma máscara aos percursos narrativos. A figura humana emerge desprovida de subjetividade, fator que deglade diretamente com a aproximação exaustiva da câmera. Curiosamente, o distanciamento de Kechiche acontece exatamente pela aproximação do aparato. E um travelling descritivo em plano geral fica reservado a mostrar este circo de horrores, denotando exatamente a consciência que o autor tem sobre a repugnancia de um certo estado das coisas. Por acerto ou erro (e isto não importa), adesão ou rejeição (isto também não importa), Kechiche apontou um limite sóbrio. Ao acompanhar o abuso do corpo, não somos ofertados uma milagrosa redenção (Lars Von Trier) ou um êxtase libertário (Darren Aranofski), mas sim um silêncio absurdo, uma mudez obstinada em não deixar vir à flor da pele o que se sente.

Vênus NegraIsto cria um enorme esvaziamento de conotações morais radicais. Nada mais literal que a sequência do julgamento contra Caesar (Andre Jacobs), seu mestre de marionetes, onde não se vê argumentos plausíveis para lhe condenar e, perante o rosto esvaziado da vítima, desconhecemos falsidade ou sinceridade, submissão ou voluntariedade. Não à toa que a narrativa execute uma inversão perspicaz e venha a trazer a colonizada ao mundo dos colonizadores, e não vice-versa. Pois numa conjuntura onde tanto o dominador quanto o dominado abandonam suas respectivas famílias e traçam uma jornada de abjeção visando uma dimensão financeira (que Kechiche faz questão absoluta de pontuar a todo e qualquer momento), o problema ultrapassa o escopo diretamente da ética para com o "outro".

Vênus Negra
não se move para sanar a eterna culpa civilizatória (pois nisto não enxerga saída), não caça subjetividades nas tribos africanas e, permitindo-se uma certa frugalidade em relação ao tema, tem aversão a vilões demarcados, vitimizações ostensivas ou cumplicidades absolutas. Avizinhando-se de um corpo, Kechiche operou um filme em terceira-pessoa que escrutiniza o mundo antes de seus indivíduos e se torna extremamente frutífero exatamente à medida em que ilutra um espaço para onde tanto um quanto o outro são tragados. Comover o espectador por sentimentos mórbidos ou gerar reações ultrajantes contra as figuras que açoitam a personagem principal são vontades que passam absolutamente ao largo. E se Vênus Negra tem certa dificuldade em reconhecer quem efetivamente deve condenar, certamente não é por ficar em cima do muro. Em um universo corrompido, repugnante, infestado de horrores, onde um cientista paga para analisar o órgão sexual de uma africana e, apesar da rejeição, logo em seguida ela voluntariamente se entrega a um trâmite de sedução e prostituição, certa frieza, indecisão e distanciamento fazem-se mais do que necessárias. E o único término digno que se pode dar à negra é, saindo da África e dilacerando o corpo para trazer uns merréis para casa, concluir a trajetória de decadência balzaquiana e retornar para sua terra natal como restos. Ainda que não venha a encontrar saída para o problema que enfrenta, Vênus Negra, com suas cenas por vezes demasiadamente longas e apáticas, às vezes martelando na mesma tecla racial de sempre, é significativo ao aportar na justa medida o limite de um método.

Julho de 2011

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