Verônica, de Mauricio Farias (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

Vergonha do gênero

A primeira imagem que vemos é da laje de uma favela, onde os sempre algo fetichizados personagens de traficantes de drogas cariocas trocam algumas palavras sem muita importância. Pode parecer que o filme envereda por este gênero a estas alturas já bem conhecido (o “filme de favela”, ou ainda o “filme de traficante”), mas eles serão apenas coadjuvantes distantes, que dão o primeiro passo da história, mas que pouco aparecem nela. Na verdade, como o título bem deixa claro, o filme é sobre Verônica – mas quem é ela? Assim que Andréa Beltrão surge na tela em meio a uma enormidade de atores pouco conhecidos, restam poucas dúvidas: Verônica é ela, e o filme será sobre ela.

O contraste na tela entre a figura de Andréa Beltrão e a presença deste grupo de atores quase homogeneamente desconhecido (Marco Ricca é a exceção) ajuda a explicitar alguns dos paradoxos deste Verônica. Porque de fato o filme parece não se dar conta do diferente nível de percepção obrigatoriamente aplicado pelo espectador ao se relacionar com estes dois tipos de performance: se com os outros atores, temos a tendência a uma relação direta com seus personagens, com Beltrão observamos sempre o seu trabalho de composição, a sua tentativa de tornar o seu corpo confortável naquele ambiente de classe C/D, naqueles espaços de marginalidade. Esta diferença de registro, onipresente, nos distancia de Verônica, a personagem – mas também de Verônica, o filme. Porque, se para Mauricio Farias o realismo naturalista parece ser a linguagem a se buscar (como vemos na fotografia granulada e de câmera na mão ou na direção de arte detalhista), a presença de Andréa Beltrão se torna sempre distrativa, sempre performática demais.

É claro que Maurício Farias pode alegar estar realizando um filme de gênero, um clássico pequeno filme de ação-policial procurando se inserir numa tradição que vem principalmente do cinema americano dos anos 70-80 (onde Glória de Cassavetes surge como uma inspiração tão radicalmente presente que, sinceramente, nem importa se ela é assumida como tal pelo filme) e que, neste cinema de gênero, tudo é permitido – principalmente este “salto de irrealidade” que é a presença de astros hollywoodianos (ou globais, no caso) interpretando as pessoas comuns. No entanto, para além da opção por escalar todos os outros personagens de maneira absolutamente distinta (o que parece muito mais querer chamar a atenção para a performance de Beltrão do que qualquer outra coisa), o que Farias precisa equacionar aqui é um outro paradoxo: a maneira pela qual aparentemente o cinema brasileiro não consegue nunca fazer “apenas” um filme de gênero.

Não é por acaso, então, que Verônica precisa não só dar conta de uma relação direta com a realidade brasileira contemporânea (principalmente a carioca), como precisa refletir sobre isso o tempo todo (como vemos no final, no discurso em off da personagem), se transformando, assim, em mais um exemplar do paradoxal “cinema de gênero de arte”, este estranho híbrido tipicamente brasileiro. Neste movimento, Farias é apenas mais um diretor que parece não se dar conta do quanto poderia ganhar valorizando-se de verdade com um cinema simplesmente livre das amarras excessivas do tecido sócio-político nacional. Porque, mesmo que falte a ele o domínio dos ritmos internos do filme de ação e mesmo que apele para elementos por vezes extremamente óbvios (como o flashback perto do final deixa claro), o que de melhor Verônica tem a propor seria mesmo este movimento rumo ao gênero – que, no entanto, nunca se realiza de todo, como se, um pouco envergonhado, o filme quisesse que, ao invés da performance que sobressai, no fundo acreditássemos é na “verdade” da Verônica-Andréa Beltrão. Mas isso é impossível.

Outubro de 2008

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