in loco - cobertura dos festivais
Versalhes (Versailles), de Pierre Schoeller (França,
2008) por Eduardo Valente A
história de Enzo e Damien
Embora não seja necessariamente
a maneira mais rica de se olhar para um filme, é inegável que, em alguns casos,
tão marcantes quanto suas características mais positivas podem ser os erros que
uma obra não comete, as armadilhas nas quais ela não cai. Talvez, no caso de Versalhes,
resida aí um dos seus maiores feitos – embora haja na tela coisas suficientes
para que o filme se afirme por si só. A começar pelo mais óbvio passo em falso
que Pierre Schoeller poderia tomar: ao tratar da história de um menino e sua mãe,
ambos moradores de rua, e depois da relação dele com um outro morador de rua,
Versalhes podia ser exatamente isso que a sinopse parece indicar – um “filme
sobre moradores de rua”. Não é o caso. Mesmo que surja em cena a figura do Estado
Social e sua relação com estes moradores, e mesmo que os personagens de Guillaume
Depardieu e de Judith Chemla precisem discutir pontos de motivação no movimento
rumo às ruas ou de crença mesmo na permanência por lá no caso dele, este é um
filme sobre alguns personagens e não sobre um todo que eles representam. Não é
um filme de denúncia, nem muito menos de idealização. É uma história, como deve
ser o cinema de ficção. Temos aqui, portanto, um filme sobre
Enzo e Damien: o primeiro, o menino abandonado pela mãe nas mãos do segundo, um
morador de rua "ideológico", ou seja, alguém que, num
determinado momento, decidiu por este caminho e por estar sozinho. Na verdade,
a partir do encontro dos dois, é disso que o filme fala seguidamente: do
que é estar sozinho e do que é estar com outras pessoas. Em que
medida os encontros e os laços formados nos permitem depender da presença
alheia ou nos aprisionam em amarras sociais que nos aprisionam de maneiras diferentes.
No caso de Damien, o abandono à família (e todos os outros contatos
mediados por dinâmicas de relação tradicionais) foi uma opção
sua; no caso de Enzo, foi imposto (e, no entanto, talvez este abandono tenha libertado
sua mãe e dado uma chance a ele). O que temos, então, são
duas pessoas que tentam lidar juntas com esta realidade, da melhor maneira que
saibam ou consigam.
E aqui o termo pessoas realmente parece mais adequado
do que personagens pelo simples motivo de que as presenças de tela de Depardieu
(Damien) e de Max Baisette de Malglaive (Enzo) é de tamanho magnetismo e força
dramática que nos parece impossível ficarmos apenas no terreno da ficção. Seus
corpos, mas principalmente seus rostos constroem uma coisa outra, para além de
si mesmos, mas também para além do que o roteiro de Schoeller poderia prever.
Existe um momento especifico do filme, já na sua parte final, um confronto entre
os dois na cozinha da casa onde acabam encontrando refúgio que é das trocas mais
impressionantes entre dois atores – e que se torna tão mais assustadora, claro,
quando pensamos na idade do pequeno Enzo/Max, e na construção deste olhar de uma
agressiva tristeza que seu personagem carrega e que nos faz acreditar nele para
muito além do que qualquer construção dramática poderia prever. À esta vida que
só mesmo um rosto de criança pode ter, sobrepõe-se a visceralidade de um Depardieu
que consegue, neste que seria um de seus últimos trabalhos, atingir a expressividade
sem qualquer hiper-significação. Como Damien mesmo diz num certo momento, numa
frase que pode servir para falar do personagem como do filme em si: “é o que você
vê e tudo que você não vê também”. No
entanto, por poderosas e viscerais que sejam as presenças dos dois, Pierre Schoeller
não deve ficar de fora quando falamos dos acertos atingidos por seu filme. Primeiro,
porque as atuações de Judith Chemla, Aure Atika e Patrick Descamps nos outros
três papéis de real presença no filme não deixam dúvidas de que o trabalho de
direção de atores de Schoeller é um de extremo cuidado e riqueza de construção
– para além de sua câmera que exala uma tranqüilidade tocante, sem chamar atenção
para si, sabendo-se a serviço daquelas presenças, sem com isso propor recortes
e tempos de cena que evidenciam uma considerável inteligência sensível no olhar.
Mas também porque seu roteiro é muito hábil em construir um arco dramático para
os personagens e a história sem precisar para isso nem apelar para simplificações
ou explicações exageradas (há uma enorme quantidade de sentimento represado em
jogo no filme, os quais entendemos sem precisar que muito ou nada seja dito),
mas também sem optar pelo caminho fácil do “realismo de arte”, onde foge-se da
idéia mesmo de dramaturgia em busca de uma solução “pelo mundo”. Schoeller consegue
neste Versalhes, através do trabalho em conjunto com seus atores e principais
colaboradores técnicos, urdir uma ficção em cujos personagens acreditamos e trajeto
nos envolvemos justamente pela possibilidade de mesclar noções de storytelling
com a força da presença deles em cena. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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