sessão cinética
Viagem ao Princípio do Mundo,
de Manoel de Oliveira (Portugal/França, 1997)
por Luiz Soares Júnior

Viagem ao princípio do fim

"Diz a eles - a teus amigos e conhecidos - que se não voltares será porque o teu sangue se congelou e paralisou ao contemplar estas horríveis cenas bárbaras (...). Diz-lhes que se teu coração se torna de pedra, teu cérebro um frio mecanismo de pensar e teu olho simples aparelho fotográfico, é porque não terás voltado para eles (...) Segura com força a minha mão, não tremas: pois deverás contemplar coisa ainda pior por vir."
Z. Gradowski, Pergaminhos de Auschwitz

"A História é a paixão dos filhos que tentam compreender os pais".
Pier Paolo Pasolini

"Estes anos estão mortos. Sim. Um tempo que separa nosso tempo e que com o tempo se torna agora". Esta sentença é o leitmotif de Viagem ao Princípio do Mundo, e provavelmente do cinema de Oliveira, um cinema que se debruça sobre a tarefa de presentificar. Tarefa árdua, infinita, cochicha-nos o Sartre do "Tempos Modernos", sobretudo em tempos do capitalismo de mercado, cuja demoníaca ambição é a de encobrir os nossos mortos sob a memorabilia do arquivo e do museu. O passado como souvenir, eis a divisa desta nova barbárie.

Viagem ao PrincípioMas a presentificação, arte na qual este arqueologista do espírito - antes: genealogista da ruína - vem se esmerando nos últimos anos, segue o caminho contrário ao do inventário, que ratifica a experiência como um tesouro a ser encontrado, objeto à disposição de nossa ação e poder (da ação subjetiva, bem entendido). Aqui, a experiência vai se fazendo à medida em que somos abalroados pelo teatro das matérias do mundo, que nos convida a um duelo; não à toa, muitos dos personagens de filmes de Oliveira são viajantes, puras superfícies imantadas pelo impacto radiográfico que outras superfícies - paisagens ou monumentos, companheiros de viagem e de massacre, comensais ou amantes - exercem sobre eles.

Não há flashbacks em seu cinema materialista; não há captura (rapto?) do passado numa reconstituição narrativa ou dramática, porque o passado a rigor só existe como vestígio no presente (ruína?), traço que ulcera a matéria vigente e frontal: em Viagem, a árvore na qual as crianças cravaram um sulco, o balcão da casa da criança doente, o colégio onde Manoel estudara quando criança. A atenção é a prece natural da alma (Malebranche): Presentificar consiste em deter-se, atenta e oracularmente, sobre o espaço-tempo de cada coisa, até que estas acabem por destilar os eventos a que assistiram, a "entregarem o jogo". "Dotar as coisas e os seres do poder de voltar os olhos para nós". O conceito (vidência?) benjaminiano de aura nos ajuda a explorar estas defrontações entre a subjetividade e o mundo - sempre cultural, institucional, secular. No caso de Oliveira - que não acredita mais, como entomologista civilizado que é, em noções como percepção natural, natureza humana, etc -, "o mundo" é, antes de tudo, o conjunto dos signos e cerimônias de uma cultura.

ViagemEstátuas e monumentos (em Viagem, o colégio onde Manoel estudara, a estátua de Pedro Macau, uma raposa num quadrinho, o balcão onde outrora um menino ardia de tifo) são alvo de uma insistente perquirição da câmera; parecem animar-se sob o influxo do tempo que lhes é dedicado, adquirir o status de uma vida consciente (para-si), e não meramente presente, (a consciência que nos falta, na hora grave?). Oliveira encarrega os objetos de prestar testemunho sobre o que foi: marcos de presença. Diante da evanescência das aventuras humanas, resta ao inanimado o poder da evocação: em seu cinema, somos nós a inútil paisagem.

Com exceção do hierático Pedro Macau, em Viagem ao Princípio do Mundo tudo naufraga sob o atropelo destes travellings traseiros, que infiltram a bonomia nonchalante (casual) do filme com presságios de dissolução. Em contraposição a esta derrocada geral, as cariciosas panorâmicas sobre a pradaria parecem uma bênção; mas talvez correspondam ao ponto de vista de um personagem, olhar desolado sobre o que restou. No horizonte (passado e presente) do filme e da História, a Guerra: a Segunda Guerra, no relato do ator (Afonso) que acompanha Manoel, em busca das origens lusitanas do pai; e a Guerra da Bósnia, ainda candente à época, 1997. É no quadrante traumático deste êx-tase temporal (1940, 1997) que uma consciência se forja, à ausculta do mundo. Impossível dissociar a experiência de seus personagens de um percurso pedagógico: quais os valores em jogo na mise en scène de nossa civilização, seus ritos?  Portugal, Europa, Mundo: o contato com a realidade é impensável sem a mediação desta tríade histórica e filológica, o aprendizado destes códigos e das suas possíveis (perversas) exceções; ao mesmo tempo, esta História necessariamente se encarna num ente, casa-monumento ou arquivo-museu; "pois o trabalho de Oliveira desde Soulier de Satin consiste em confrontar um texto e um corpo, em dar corpo aos recitativos, aos arquivos, crônicas, aos romances, aos cantos que ele descreve" (Antoine de Baecque).

ViagemManoel e sua trupe partem em busca de um passado(s) - o passado de Manoel, o passado do pai de Afonso; numa época de guerra, em que a experiência sofre um déficit considerável - exílio, desagregação familiar, perda de referências históricas e geográficas -, eles partem no rastro de uma experiência. Mas há um uso distinto para este passado, esta nova vida possível para a qual buscam um refúgio na rememoração; Manoel quer gerar um filme, talvez o último. Erigir outro marco de presença, à semelhança das estátuas e dos ritos que os vão encontrando pelo caminho; presença que resista ao transitivo esquivar-se de tudo e de todos, à barbárie da História, ao Mal. E Afonso, gerir o passado obscuro, reatar o romance das origens do pai, reencontrar (por ele) os queridos que deixara para sempre, na aurora do franquismo.

Ambas são aventuras de desterritorialização, de salvação por intercessão da Alteridade: num filme por-vir - este Outro feito escritura -, o decrépito Manoel resgata a infância; acabado o percurso da reconciliação (Fim e Princípio, Vida e Obra, Viagem ao Princípio do Fim), podemos enfim morrer em paz. E Afonso enterra finalmente o pai, depois de terminar por ele a história inacabada no rincão materno. Filme testamentário, epicurista, com laivos de ironia ("mas ele não fala português!"; a mascarada do final, com Afonso "encarnando" o pai ao espelho), Viagem ao Princípio do Mundo retoma para a palavra saudade - tão belamente sublinhada no tablado brechtiano do lisboeta de Leonor Silveira - um significado suplementar: não apenas um debruçar-se e um enlutar-se sobre o que nos falta (carência, negativo), mas a plenitude elegíaca que um dia inspirou o verso dos poetas e profetas da aurora da civilização.

Julho de 2011

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