Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo,
de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz (Brasil, 2009)
por Paulo Santos Lima

O dono da voz e a voz do dono

Uma estrada vista da cabine de um caminhão, à noite, iluminada pelos faróis do mesmo. Imagem emoldurada e intermediada pelo pára-brisa do veículo que poderia bem ser a de um roadmovie. Mas também, junto ao maltrato do asfalto arruinado pelo tempo, poderia ser um registro de viagem às entranhas nacionais, ou um primeiro e típico plano inicial e introdutório de um documentário brasileiro dos anos 2000. O fato é que Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo é um tanto dos dois, ainda que declarada e convencionalmente seja um longa de ficção, doída história de um homem desiludido que procura, irado e perdido, reencontrar o prumo da vida. É na cabine do caminhão que está o reator do filme. Os diretores Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, anos atrás, caíram na risca asfáltica para fazer um documentário on the road, visitando espaços e gentes. O projeto transformou-se num enredo ficcional, sobre José Renato, geólogo de Fortaleza que cruza boas milhas do sertão para checar as condições para a construção de um enorme canal que atravessará o inclemente semi-árido nordestino. Abandonado pela esposa amada, com a vida fora de prumo, ele aproveita a viagem para fazer um tour existencial.

O filme conta, portanto, com as tais imagens capturadas pelos cineastas, algumas tantas outras fotografias de quartos de hotel, lugares outros e pessoas. José Renato não aparece além de sua voz, em 1a pessoa, falando sobre si e sobre o que vê.
Assim sendo, no caminhão que avança por estradas e que permite a câmera sair ao chão e olhar pessoas, botecos, casas de forró, puteiros, areais etc, há, antes de tudo, a voz do protagonista, que na verdade é um narrador onisciente que dá sentido às imagens, rouba-lhes o seu espírito essencial para lhe obrigar ao funcionalismo. Um narrador que vem antes, literalmente, e o caminhão se faz um lugar privilegiado dessa percepção, pois, do nosso ponto-de-vista, ele está antes do pára-brisa, antes de qualquer imagem que surge. Sua voz parece estar entre a tela e platéia. E José Renato vocifera. Tem, desde o início, uma relação aversiva àquele espaço, à estupidez daquela viagem e a descrença nesse projeto absurdo de construir um canal de água para benzer de progresso a região. O geólogo sabe que isso seria menos que um paliativo. Ele comenta, a nós, sobre as condições locais. Decreta, por exemplo, que o sorriso de uma família é um falso sorriso, porque aquelas pessoas não estariam verdadeiramente felizes. Estariam encenando?

Os procedimentos aqui importam menos que os efeitos. Se a voz de José Renato (bem entoada por Irandhir Santos, é sempre bom ressaltar) é um item ficcional, as imagens não são itens ficcionais e tampouco ficcionalizados. Estar “a serviço de” não necessariamente faz desses objetos coisa outra. Por mais que contribua para erguer a trama, o material capturado, visto na tela, nesse produto final chamado Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, possui um efeito de “real”, de exposição direta, em nada se parecendo com uma encenação. É fato que o filme é destituído de performance, inclusive contando com entrevistas. Portanto, a tal família poderia, sim, estar sorrindo. Ou, sem delongas, ela foi filmada quando Gomes e Aïnouz faziam um documentário. Tiveram suas imagens roubadas para outros fins. É um princípio que ultrapassa Kulechov, na medida que nem é a montagem, mas sim uma voz, quem dá sentido e conduz a leitura dessas imagens – imagens de pessoas sem poder sobre o que será feito com sua imagem.

Mas Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo não parece, de modo algum, um filme canalha, mal intencionado. A trajetória de Gomes e Aïnouz é impecável, dois dos grandes cineastas a capturar um nordeste livre de significados ou representatividades, livre do clichê do “espaço do embate social e político do país”. Daí que, como “contravenção”, “deturpação” do uso que tem de ser feito do sertão, a dupla faz bonito: o espaço e as coisas do mundo estão à disposição do cinema, e a padronização dos sentidos vindos de certas imagens vem de algo exterior a elas. Mas, quando se fala de cinema, o efeito é algo que não pode ser deixado de lado. E não há como não ver a região visitada por José Renato como um lugar do avesso, do avesso daquilo que ele considera a vida.

O geólogo até redescobrirá a vida, expurgará a dor de tomar um fora de sua amada, num casamento falido e tal, indo ao encontro com os locais (seres e espaços). Conhecerá prostitutas, visitará forrós, estenderá o tempo de viagem, até que, ao final, ele renasce. Não deixa de ser um self-service para reencontrar o norte da alegria, mas ainda assim seria bonito e reverente a tudo que foi mostrado (não falado) ao longo do filme. Mas aí, por uma opção infeliz, o poderoso narrador sai daquele espaço para ir a Acapulco, onde ousados saltam do alto das rochas para mergulhar no azul mar magnífico. Interessa menos a leitura sobre o “salto para a vida” e mais a atenção à montagem, ao que foi mostrado e comentado até então: o nordeste é o lugar árido, desolado, impossível, mortuário, ao passo que aquelas águas e rochas úmidas de Acapulco são a renovação, a vida.

O cinema tem dessas coisas, contudo. Os efeitos fazem com que nosso senso passe longe da natureza dos objetos, os procedimentos muitas vezes não são os mais “corretos”, mas o resultado, como um todo, pode ser uma grande comoção sensorial. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é uma grande experiência de cinema, transmutando registros, filmando com câmera na mão fotos desfocadas de ordinários quartos de hotel, apelando à música popular, a Noel Rosa, à literatura, para se construir um discurso pessoal de um homem na encruzilhada da vida. Apesar dos “assassinatos” cometidos em prol de um discurso cinematográfico vigoroso, o que surge na tela está bem longe da banalidade. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, um The Brown Bunny ultra prolixo e declaradamente happy end e a fim da vida, é bonito a ponto de quase desproblematizar o extrativismo com o qual ele se colocou de pé.

Outubro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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