Vicky Cristina Barcelona (idem),
de Woody Allen (Espanha/EUA, 2008)
por Francis Vogner dos Reis

Colocando problemas

Estranha e mal compreendida a trajetória de Woody Allen, em que certamente seus últimos filmes realizados na Europa, entre eles este Vicky Cristina Barcelona, ampliam os equívocos do juízo que se faz acerca do cineasta e de seus filmes. Acusado de autor acomodado, encenador preguiçoso e esteta acadêmico por alguns, é saudado por outros como um diretor “artístico” seguro, que realiza filmes elegantes de uma intelectualidade satisfatória e fácil de ser decodificada. A ida do diretor para Europa certamente não mudou a impressão de quem acredita nesses estereótipos, mas olhando com mais atenção e, sobretudo, boa vontade é possível ver ai mais uma metamorfose discreta, de um cineasta que arrisca, a essa altura da carreira, desvincular seu cinema da sua auto-imagem para achar o que, no meio disso e para além dos clichês de cinema de autor, sempre foi elementar para sua obra. Vicky Cristina Barcelona integra essa seara, ou melhor, coloca problemas fundamentais. É, entre os seus últimos trabalhos, o mais frágil – mas também não poderia ser diferente: seus filmes mais frágeis são aqueles que sempre colocaram problemas de maneira muito evidente.

Aqui, tudo começa como um conto moral de duas amigas norte-americanas em viagem à Espanha, que dividem convicções semelhantes em muitos assuntos, mas possuem diferenças inconciliáveis em se tratando do amor: Vicky acredita na previsibilidade do relacionamento seguro, Cristina gosta do risco do amor louco. Uma sabe o que esperar da vida, a outra se submete ao provisório. Se o título conta com o nome das duas personagens que delineiam duas diferentes forças do filme, falta entender o que “Barcelona” tem a ver com isso. Sim, é o lugar da ação, das projeções e dos clichês (sejam cinematográficos, culturais, turísticos e iconográficos) a partir da aventura das protagonistas. Mas, sendo uma terra em princípio exótica, estranha e que se apresente como uma sucessão de imagens de cartão postal, nada mais natural que haja um personagem que concentre toda essa galeria de imagens romantizadas: o pintor interpretado por Javier Bardem. Ele será visto por elas e responderá às personagens de Vicky e Cristina no que o narrador, em princípio, já problematiza.

A cena em que, numa festa, ambas notam o pintor é uma das melhores filmadas pelo diretor nos últimos tempos. A câmera se coloca em diversos ângulos diferentes. Em nenhum deles vemos o pintor, mas somente a reação das americanas, de acordo com o que esperamos delas: de Vicky, a curiosidade não comprometida; de Cristina, o fascínio comprometedor. A partir disso o cineasta coloca à prova as convicções de suas heroínas, nunca as negando ou ratificando, mas estabelecendo um limiar entre suas afirmações e a contradição que nasce da experiência delas. É ai que moram os problemas, que são uma eminência parda em toda a sua obra, e que Woody Allen identifica e expõe aqui com alguma coragem. Apesar de meticuloso, Woody Allen não é um cineasta do cálculo, mas da zona de insegurança. Vicky Cristina Barcelona não é só um filme sobre isso, mas que também sofre disso. É como se, ao afirmar algo, o diretor soubesse de antemão da contradição e do erro possível que suas escolhas proporcionam. Por isso, nada mais natural que tenha feito filmes trágicos e corriqueiros como O Sonho de Cassandra e Match Point (até Scoop, em certo sentido), que equacionam essa problemática ao optar por um foco mais concentrado.

Vicky Cristina Barcelona não trilha o essencial coloquial e admirável dos filmes anteriores, é trabalho de dispersão. Não que ele seja esquizofrênico, mas suas situações são tão soltas que ele abrirá mão do princípio de conto moral que rascunhou em seus primeiros minutos. Toda a parte da relação a três com a Penélope Cruz é tão coerente quanto excessiva. Existe ai uma conciliação temporária da contradição que acompanha as personagens, o que não é um problema, mas resvala na redundância ou na amplificação – sem conseqüências significativas – do conflito. Apesar do final dar sentido a essa trajetória um tanto acidentada, não dá pra deixar de pensar que o custo da problematização que o cineasta faz de sua própria trajetória é um filme desequilibrado (algo que já aconteceu, por exemplo, com Celebridades e Desconstruindo Harry).

O que é estimulante, apesar de tudo, é que Woody Allen não escamoteia suas limitações a partir de truques de estilo, ao contrário: acredita que traze-las à tona seja a melhor maneira de resolvê-las. Isso pode ser até um pouco questionável, mas naufraga essas concepções preguiçosas sobre Allen como um cineasta que se esconde atrás do comodismo de sua celebrada autoria.

Novembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta