in loco - cobertura dos festivais
Vida, de Paula Gaitán (Brasil, 2008) por
Francis Vogner dos Reis Estética
da generosidade
Quando em cinema se fala em “risco calculado”
naturalmente se pensa em um filme falsamente radical, que se preocupa em empreender
uma busca estética dentro dos limites do suposto bom senso e que não transgrida
a medida entre a liberdade artística e a adequação a modelos consagrados por outros
cineastas. Coisa de quem tem vergonha de ser ridículo e medo de ser incompreensível.
Ou seja: radicalidade em terreno seguro é moeda fácil. Só que quando se trata
de arte, a segurança não é uma atitude estética muito digna – mas, dependendo
do projeto, o bom senso sim. Às vezes o risco calculado (ou melhor, o risco consciente)
impede que o filme enverede pela pura e simples sandice, pela experimentação (estéril)
que não respeita a integridade do material. Pois se em Vida
existe o que podemos chamar de “risco calculado” (ou consciente) é porque se pretende
fazer não uma biografia ou uma mera homenagem afetiva à atriz Maria Gladys, mas
um retrato poético. Onde estariam o risco e o cálculo ai? O risco está em dar
imagem a uma série de sentimentos. Como se sabe, o cinema raramente lida bem com
as coisas que não são concretas. Por isso, se por um lado temos algumas imagens
que optam pela procura da beleza ao invés da busca do sentido (da analogia, do
contraste fácil), por outro temos um “estudo de personagem” muito objetivo. Maria
Gladys pensa sobre si e sobre o passado. Ela fala de sua gênese artística e das
experiências que a conduziram até ali. Em princípio esse gosto por lembrar do
que passou não é ruim nem bom por si. Hoje, temos desde a necrofilia dos documentários
de Silvio Tendler até o entusiasmo pelo presente que depura as experiências passadas
nos filmes de Eduardo Coutinho. Vida é um tanto nostálgico é verdade, mas
nada que faça do filme um lamento ou culto a uma personalidade de outra época.
Em Vida temos o passado como questão (e questão do presente, sobretudo).
O filme de Paula Gaitán é sobre Maria Gladys, atriz fundamental
das décadas de 60 e 70. Enquanto na época Helena Ignez reinventava (e transcendia)
sua técnica nos filmes de Sganzerla e Bressane, Maria Gladys fazia de seu corpo
uma bomba de energia – ou, como diz ela mesma em Vida, “vontade, emoção
e pouca técnica”. Havia um método claro no trabalho de Gladys, mas a impressão
era que a atriz fazia da intuição seu impulso rítmico. Não por acaso, temos como
os dois filmes que mais fornecem cenas ao filme de Paula Gaitán, Os Fuzis,
de Ruy Guerra, e Sem Essa Aranha, de Rogério Sganzerla: dois trabalhos
diferentes da atriz, que revelam uma artista que tem consciência de sua relação
com a câmera e que sempre construiu, e afinou, seu trabalho a partir de um entrosamento
(nem sempre harmônico ou conciliado) com o olhar do diretor. Paula
Gaitán entendeu essa energia da atriz e fez de seu filme uma descrição minuciosa
(e orgânica) da arte de Gladys. Assim, não interessa colocar a câmera a serviço
unicamente do depoimento da personagem, como se ele em si pudesse revelar alguma
coisa, mas buscar um modo de estabelecer um jogo e um conflito de Maria Gladys
com sua própria imagem. “Do que seria feita essa imagem?”, é a pergunta do filme.
Se a ambição da pergunta visasse só a mera relevante história e biografia poderíamos
ter um regular documentário careta. Entretanto, a pergunta é direta e difícil
porque constitui, principalmente, uma procura que não se vale só das informações
possíveis, mas de uma busca estética. E essa busca é apreendida a partir das imagens
que temos (filmes, fotos, imagens da atriz em casa), das mediações possíveis entre
o trabalho e vida, se erigindo sobre o que a sensorialidade das imagens – em especial
aquelas não óbvias ou ilustrativas, como a bela seqüência das danças – podem revelar.
Porque, afinal de contas, estudar uma personagem (ou uma mulher de fato, porque
aqui no caso não há – e nem interessa – uma separação clara) não é procurar só
o que é dito ou demonstrado, mas o gesto, e o que não é possível ser dito. Maria
Gladys fala bastante, de si, de seus trabalhos, recita alguns poemas, mas muitas
das cenas mais bonitas são as de silêncio, porque elas contêm alguma melancolia
que em nenhum momento é verbalizada pela atriz. Vida é um filme triste,
não porque faça dessa rememoração um atestado de decadência, como anda tão em
voga no discurso da geração de artistas da qual Maria Gladys faz parte. Claro,
existe a declaração da atriz de que tudo valeu a pena: o filme afirma a vida,
mas a melancolia (leve e nada catastrófica) vem da constatação de que, a certa
altura da vida, muitas coisas ficaram pelo caminho, muitos se foram. Mas ao invés
de Gaitán e Gladys lamentarem, eles se aplicam a organizar isso tudo. É necessário
organizar e dar sentido a toda essa memória e ver, hoje, o que se segue a partir
disso. O que está em jogo é o modo como a diretora apreende esse turbilhão que
é Maria Gladys, e como a atriz se relaciona com o tempo. Sua generosidade com
a vida e com a arte (sem separação nem confusão), apesar de tudo, porque a vida
e arte, nem sempre são generosas. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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