emulando Ensaio
de uma revolução Ensaios
do mundo - Parte 1 por
Andre Brasil Videogramas de uma Revolução
(Videogramme einer Revolution), de Harun Farocki
e Andrei Ujica (Alemanha, 1991/1992) (*)Uma
definição “cinematográfica” para o que chamamos de revolução poderia ser: o momento
de defasagem entre uma imagem do mundo e outra imagem do mundo em vias de se criar.
Ou melhor, o momento de defasagem entre um mundo de imagens e outro mundo de imagens
ainda por vir. Vista a partir desta perspectiva, a política seria uma questão
de visibilidade: o que nos é ou não possível ver em determinado momento da história?
A revolução, esta seria uma cisão, uma fissura que colocaria em crise dado mundo
de imagens diante de outro mundo por se inventar. Videogramas de uma Revolução,
ensaio audiovisual de Harun Farocki e Andrei Ujica, nos mostra um momento histórico
no qual esta fissura se faz. Por meio de um repertório impressionante
de imagens de arquivo – fragmentos da mídia e vídeos amadores –, o vídeo acompanha
o processo da queda do ditador romeno Nicolae Ceausescu, que, após intensa revolta
popular, culmina com sua execução, em dezembro de 1989. Trata-se de um trabalho
por meio das imagens e sobre as imagens, ou ainda, um trabalho que nos mostra
a maneira como a própria história se faz em imagens.
O filme Videogramas
se inicia, bruscamente, com um angustiante plano-sequência de três minutos. Nele,
uma mulher ferida pela polícia de Ceausescu durante as manifestações, deitada
no leito de um hospital, discursa para as câmeras de TV, não sem antes checar
as condições de sua performance midiática. Entre gritos de dor, trava-se o diálogo: -
Eu gostaria de dizer uma coisa. - Aos rapazes? Diga. - Quero que transmitam
uma mensagem de minha parte. - Fale. Isto vai passar na televisão. - Vão
gravar o som e as imagens? Nessa cena, se vislumbra o mundo
que, antes mesmo de 1989, começava a se revelar como sendo o nosso: nele, os acontecimentos
da história passam a ser, com cada vez mais intensidade, indissociáveis das imagens
que circulam, em direto, na mídia. Ou seja, cada vez mais, os acontecimentos se
performam como imagem e a imagem se torna o lugar onde eles acontecem. O nosso
é, portanto, um mundo em que a história se faz ao vivo, em direto e em amplitude
global. Desde então, um acontecimento será político somente quando encontrar seu
espaço na programação das emissoras de TV. Esse é o universo do qual fazem parte
as intervenções no Golfo e o atentado de 11 de setembro. Entre eles, os inúmeros
conflitos em países da Ásia e do Oriente Médio, que fazem da guerra não mais uma
exceção, mas a regra de uma forma de governo. A guerra se torna um modo de se
governar que, por sua vez, se fundamenta em uma “logística” das imagens (Paul
Virilio). Videogramas é um ensaio audiovisual atento a esta logística,
em seus primórdios. Em
outra cena do filme, uma passagem decisiva: Ceausescu discursa para uma multidão,
em mais um comício oficial, realizado para sustentar seu governo. A mídia estatal
cobre o evento, valendo-se de uma gramática nossa conhecida. Eis que, em meio
à cobertura televisiva ao vivo, o olhar do ditador percebe algo, inquieta-se.
A imagem da TV estremece, não simplesmente devido a uma falha técnica, mas porque
é todo o espaço em torno que treme. Revoltada, uma multidão invade o local e começa
a tomar as ruas e os prédios. O ditador pede calma. Como último recurso, a televisão
corta a imagem para um fundo vermelho. O áudio continua, com uma voz que pede
tranqüilidade à população. Há ali uma defasagem entre o
áudio que segue e a imagem que foi cortada. Essa defasagem, materializada pela
cena midiática, mostra outra mais importante: o que a cena explicita é o momento
preciso em que a história fissura, fende, o momento de passagem entre as imagens
de um mundo que, agora, se transforma em outro e que, por isso, demanda novas
imagens. Este é um momento político no sentido forte e exige uma visibilidade
diferente, uma outra cena. Essa
outra cena virá logo a seguir: se a TV precisou “virar as costas” à história,
ao cortar a seqüência para uma tela vermelha, o cinegrafista curioso continuou
a gravar as imagens da multidão. Elas foram recuperadas em Videogramas
e, agora, podemos presenciar, a posteriori, o desenrolar da história: a
fuga do ditador e de sua família, a tomada da TV estatal pelos líderes das manifestações,
a captura dos homens do governo de Ceausescu, os franco-atiradores escondidos
em prédios abandonados. Através de cenas dos bastidores da mídia e de vídeos caseiros
feitos por anônimos, o filme continua a apresentar os acontecimentos, revelando
como a história se costura com as imagens. Somos levados
até a execução de Nicolae e sua mulher, Elena, cujos corpos são exibidos pela
TV, como se a morte precisasse também se traduzir em imagem para se completar.
Este será, assim, o mundo: nele, proliferam-se imagens domésticas, caseiras, imagens
precárias captadas por todo tipo de dispositivo e colocadas imediatamente em circulação.
Elas convivem, competem, alimentam e subvertem o repertório da mídia e da indústria
da cultura. Trata-se de um mundo de imagens cuja autoria é difusa, dispersa, dispersiva,
e que, por isso, nos demandará novas questões políticas e éticas. O
ensaio Como outros filmes de Harum Farocki – este cineasta
que consegue ser poético em sua austera concisão – Videogramas de uma Revolução
é um ensaio audiovisual. O ensaio não deve ser visto aqui como um gênero, mas
como um “tom”, um modo de compor as imagens e o texto, de forma a situá-las entre
a alteridade do mundo e a subjetividade do autor. Mais do que isso, o ensaio permite
um “pensamento em ato”, que se improvisa, que se pensa no momento em que se constrói
a obra. Um pensamento de imersão, que se ensaia com as imagens do mundo. Em Videogramas,
os diretores parecem operar, ao vivo, uma ilha de edição, por meio da qual esboçam
um argumento, mas que, imerso na experiência e no embate com as imagens, não pode
nunca ser um argumento fechado, assertivo, acabado. Como diria Blanchot, o ensaio
é um dis-curso, um curso sempre interrompido. A voz em off
que atravessa o filme é econômica, descritiva e menos analisa os fatos do que
sublinha um e outro momento, uma e outra cena. Às vezes, a repetição dos fragmentos
(ou sua suspensão) se torna uma estratégia aliada ao texto. É assim que, juntamente
com a história que se costura com as imagens, o ensaio costura o pensamento: o
dos cineastas e o nosso. Pensamento ao vivo, em direto, colado aos acontecimentos,
como o são as imagens do mundo hoje. Mas, um pensamento que consegue se produzir
também como diferença, como escritura, como recriação, mesmo que seja na distensão
de um lapso do instantâneo. (*) Agradeço a Cezar Migliorin
a dica do filme, em seu blog. Setembro
de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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