Vencer (Vincere), de Marco Bellocchio (Itália, 2009)
por Cléber Eduardo
O
excesso por necessidade
A primeira sensação ao final de Vincere,
de Marco Bellocchio, não diz respeito ao específico do filme,
mas decorre das especificidades. É uma sensação ao mesmo tempo
de espanto e de frustração. Espanto pelo visto na tela, imagens
retumbantes e intensificadas, sem medo do excessivo. Cabe ir além
aqui: se a economia dos artifícios pode enganar muitos olhos e
gerar falsos rigores, os excessos são para poucos, apenas para
quem transita por eles sem engolir água, conscientes de que, quando
excedem, não é para armazenar gorduras estéticas. Excedem porque
o material e as emoções pedem à sensibilidade do artista – como
é o caso do nascimento do fascismo, da paixão e do próprio cinema
como cultura e propaganda em Vincere, e porque, em certos
mortos-vivos, é preciso descarregar o pente todo. Um tiro não
basta.
Já a frustração se deve a uma quase certeza. Pela
incapacidade da maioria, ou pela falta de desejo de quase todos
os diretores e roteiristas, um filme como esse não foi nos últimos
anos (e dificilmente será nos próximos) feito no Brasil. Não um
mesmo filme sobre o mesmo assunto, é claro (com as mesmas situações
e personagens da Itália no século XX), mas um filme com a mesma
frontalidade de enfoque, que parte de figuras existentes e situações
nebulosas para, sem almejar um rigor comprovatório, tomar um partido
e assumir uma posição sem pedidos de licença. Não estamos diante
de Zuzu Angel, Olga, Lula, Cazuza,
essas imagens do elogio a vítimas e vencedores, mas por dentro
dos esqueletos de um armário de zumbis. É o que faz Bellocchio
com Mussollini, com o fascismo, com a Itália dos anos 10 aos 30:
encara-os de frente e por dentro, não para preservar memórias
e democratizar informações (duas pragas entre nós), mas para mobilizar
olhares e pensamentos. Ele não se remete à historiografia, tampouco
transita por ela – como fazem a quase totalidade dos filmes brasileiros
históricos ou biográficos, que desejam apenas ilustrar uma lógica
conhecida ou visualizar fatos já narrados “n” vezes. Bellocchio
ainda acredita no cinema, o que, não custa insistir, nada tem
a ver com acreditar em prêmios, bilheterias, formas de sustento
da conta e do prestígio. Acredita no cinema como ação. Basta ver
algumas das cenas ambientadas no cinema – entre as quais a já
citada por Fabio Andrade em
seu texto – ou que se reapropriam de imagens de cinema para
reconfigurá-las. O fascismo também se fez no cinema e é pelo cinema
que vem a artilharia como resposta.
Se
também parte da historiografia, Belochio avança por dentro e por
fora dela, olha para suas omissões e não para suas repetições.
Diante de uma mulher calada pelos arquivos e internada pela repressão
por amar Benito Mussollini (Filippo Timi), e por ter um filho
dele (também Timi, quando adulto), a atitude política e artística
a adotar é a transformação do silêncio imposto a ela em um grito
operístico e pomposo. Daí a necessidade de exceder-se, contra-atacar,
dar uma resposta. Vincere constrói a História, essa com
H, a partir de uma história, essa com h minúsculo (particular,
não menor). O contexto ao qual está ligada sua protagonista, Ida
Dasler (Giovanna Mezzogiorno), é também o contexto gerador de
seu drama. Por meio da paixão dela por ele, antes dele se tornar
o Duce, vemos como funciona o fascismo, não a despeito ou aquém
da figura bufona do líder nacional, mas também por meio dele e
para além dele. O fascismo como funcionamento, modus operandi,
como dispositivo de controle.
Se desde o começo é possível se impressionar com
o shake de procedimentos visuais operando relações das
imagens de arquivos com as situações encenadas (as situações a
conectar a mulher de biografia indefinida e o líder político socialista
com sede de guerra), em matéria de informação, são confusas de
tal forma que parecem assim com algum propósito (a própria névoa
histórico a envolver os personagens em sua conexão). É apenas
com a ascensão do fascismo e o nascimento de um filho, motivo
do progressivo afastamento de Ida, que veremos o propósito central
do filme ao debruçar-se sobre a obsessão dela. Vemos a estratégia
dela na insistência em ter o filho reconhecido como fruto de Mussolini,
em ser considerada a esposa do líder (já casado), em deixar registrada
sua existência diante da política do apagamento. No entanto, ela
está em um sanatório, cercada de freiras, de loucas – ou melhor,
de outras portadoras de verdades íntimas não reconhecidas.
O
que faz Vincere, portanto, é repor o apagado. Em dado momento,
um médico, disposto a poupar o sofrimento de sua paciente, diz
a Ida que, naquele momento histórico, não é de bom tom insistir
na verdade, como uma louca, porque a loucura será diagnosticada
pelo regime. Portanto, ele a aconselha, é bom fingir. Ela resiste.
Pois somente os loucos poderiam resistir diante de uma estratégia
de arquivamento da vida. Esse compromisso de mártir para com sua
própria verdade, custe o que custar, tem no cinema uma matriz
também de fundo histórico: O Martírio de Joana D’Arc, de
Carl Dreyer. Nos dois casos, a partir de certa altura, nada mais
importa: se elas lutam por algo verídico, se o verídico está em
suas cabeças apenas. Importa a insistência. O filho existe, nós
o vemos. Já a certidão de casamento, bem, essa não foi vista por
ninguém. Vimos uma cerimônia, com várias noivas, ela e Benito
inclusive, mas quem nos garante a natureza da imagem? Não seria
um sonho? Um delírio – não da protagonista propriamente, mas da
própria narração do filme?.
No entanto, como também insiste a operação de
conectar as imagens encenadas com as dos cinejornais, o filme
não é apenas, embora também seja, sobre o passado italiano. Esses
dois tempos visuais colocam uma ponte sobre ontem e hoje. Vemos
a transformação do homem Benito em um mito Benito (apenas visto
como imagem), mas o mais importante é que essa redução do homem
à sua imagem, na verdade, é uma ampliação de seu poder e de seu
alcance por meio da idolatria visual. Parece óbvio, como já foi
notado, que a motivação, antes de ser Mussollini, é essa Itália
do século 21, comandada por um homem de imagem (no caso literalmente).
Retornando à impressão inicial posta no início do texto, é preciso,
para ser minimamente justo, relativizar a importância da cinematografia
italiana contemporânea, caso a frustração esboçada com a brasileira
possa soar como valorização dos filmes da Itália. Nada disso.
Trata-se menos de cinemas capazes ou incapazes e mais da ausência
entre nós de um cineasta como Bellocchio, com seu talento e com
sua coragem, embora também com a possibilidade de exercitar-se
no set com constância. Não temos um Bellocchio, mas eles também
só têm um – e, mesmo se levando em conta Nanni Moretti, esse Bellocchio
anda sozinho por lá. O importante é que continue a andar.
Agosto de 2010
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