Vencer (Vincere), de Marco Bellocchio (Itália, 2009)

por Paulo Santos Lima

Corpo ausente, imagem presente



Vincere
não fala somente de Ida Dalser, a amante desprezada por Benito Mussolini e pela história oficial. Para estar ao lado dela e contar também o contexto no qual ela está inserida, o filme e o cineasta Marco Bellocchio utilizam dois discursos que são, até por se tratar de cinema, também duas imagens: por um lado, as de cena (criadas pelo diretor); por outro, as de arquivo (anteriores à sua realização) e as de inserção gráfica (“criadas pela técnica” e não pelo artista). Em síntese, pensando numa lógica interna, metalingüística, o longa trata do apagamento de um corpo em cena para este reaparecer como “imagem superior”. O corpo, no caso, é o de Benito Mussolini. Assim, entre a subtração e a reaparição, temos o Mussolini do ator Filippo Timi para o conhecido Duce das imagens de arquivo. São dois momentos. E duas verdades: uma física, real como presença palpável, e outra, idealizada. Um corpo aniquilado pela transformação da matéria em idéia. Fundamental, pois Vincere está a falar também, e sobretudo (pela afinidade com a personagem), da luta de Ida Dalser em não ser apagada da cena histórica.

O filme deixa claro, também: Mussolini e Ida possuem interesses distintos. Ele quer sair dali, transcender a cena, ser outro, uma projeção maior. Na primeira seqüência do filme, afirma que Deus não existe, quando o desafia a fulminá-lo em cinco minutos contados no relógio. A seguir, nas imagens P&B de arquivo que emolduram o nome do filme, “vincere”, vemos chaminés fabris que parecem canhões apontados vetorialmente para o céu, pilares com estátuas às alturas, catedrais fazendo silhueta no fundo celeste. Constatando a ausência lá em cima, Mussolini pode migrar para o alto e assumir o papel de todo poderoso, elevar-se à condição deificada de chefe da nação e do “popolo”. Para tal, sairá de cena. E ele sabe disso: quando o povo grita “guerra” na rua, palavra inserida na cena de Mussolini avançando nu à janela, o que aparece no contracampo é a massa em imagem de arquivo. O corpo do Timi/Mussolini indo literalmente ao encontro das imagens consagradas pela ótica oficial, registros de arquivo, para o poder. Ida, por sua vez, é voltada ao que está no corpo da cena, ao seu centro, sua crença e experiência está toda ali, e já idealiza Benito na cena, seu olhar já mitificador de pronto, olhando para o Mussolini do ator Timi – um Mussolini mais íntimo, e não o Duce, aquele que a História conheceu, o filmado pelos cinejornais etc. A leitura de Ida é sempre do que está à sua frente. Benito, por sua vez, olha avante, além-plano – até mesmo quando está em sexo forte com a bela e intensa amante: olhos brancos, como um corpo oco, já esvaziado de espírito. Para um cinema bastante físico, não há como manter um corpo sem espírito, de fato.

É assim que, neste filme estruturado em dois platôs (o do chão, com imagens terrenas, físicas, e o do alto, com imagens divinas, metafísicas), Mussolini ascende e se torna uma quase instância, uma onipotência, um deus com a imagem devidamente iconografizada. Se antes o corte do fio da espada no rosto, o sangue à vista, as ataduras, os ferimentos de guerra, o suor, os cabelos, tudo isso fazia parte da realidade deste personagem, logo após sua partida, ele se torna uma imagem limpa, apenas traços e sons cujo significado é bastante reconhecível: o de ser Benito Mussolini. Antes, Mussolini era sempre tangível no nível da cena, por Ida Dalser, inclusive. Quando se ausenta, torna-se inacessível, mas, por outro lado, mais presente. Ganha uma liberdade ímpar, invadindo o filme (a cena, portanto) e podendo estar em todos os cantos. Uma imagem que se faz onipotente pela sua onipresença no imaginário coletivo, como um culto – ou, até mais, como um Big Brother.

Bellocchio repudia os totalitarismos (inclusive o da imagem, na falácia de que ela pode dar conta de uma complexidade, de uma verdade total), e por isso opta por um conjunto mais amplo de imagens de origens distintas, que não se aniquilam, e sim se conflitam numa esgrima que cria um sentido. Mas tem uma preferência pelas encenadas hoje, pois, além de serem as de sua total caligrafia (as de arquivo servem para o sentido pretendido, mas não são do diretor, e reproduzem a escrita de Bellocchio somente graças à montagem e ao conseqüente sentido criado pelas junções e inserções), elas são as que acompanham Ida Dalser, a heroína romântica e vítima do fascismo, em sua síntese significativa Mussolini. Será por essas imagens vindas da encenação propriamente dita (a verdade da cena) que o filme revelará, através de um corpo em cena, algo por trás dessa imagem idealizada de Mussolini.

Bellocchio, que, de certo modo fala aqui sobre o cinema, nessa capacidade de capturar (“roubar”) objetos do mundo e transformá-los em imagens do mundo, encontra no corpo do ator a ilustração sobre a evidência do mal. Benito Albino, o filho de Ida com o ditador, bastardo, surge no quarto final do filme como uma fotocópia de Mussolini (inclusive porque é o mesmo Filippo Timi quem assume o papel). No mesmo jogo do campo/contracampo que imperou pelo filme criando dialéticas e paralelismos, Albino entra em cena, no ato final, enquanto seu pai, em imagem de arquivo, discursa em alemão confirmando a nefasta aliança com o nazismo de Hitler. Como um perfeito personagem do cinema de Bellocchio, esse “retorno de Mussolini à cena” trará um homem alucinado, histérico, em orgasmo de insanidade explodindo vulcanicamente por dentro do seu corpo, com sangue no rosto, babas saindo da boca em largo grito, a pele suada. São duas imagens: a matriz e a sua reprodução idealizada, o Duce todo engomado falando à massa uniforme, em contramedida ao homem-besta ensandecido e arrebentado. A montagem confirma a unidade. O cinema físico revelando o bastidor do cinema de aura. O Retrato de Dorian Gray, por Bellocchio.


Mas estamos no cinema, e o corpo do ator, mesmo revelador, é também uma imagem. Bellocchio dará seu juízo ao mostrar, no último plano do filme, a cabeça estatuária de Mussolini sendo esmagada por uma prensa, em imagem de arquivo de 1945 (sequência acima), quando terminaram o fascismo e a vida de seu líder. A estátua (que inclusive aparece antes, levada ao chão por um revoltado Albino, ainda menino) é um composto entre os dois mundos, e, por isso, é também uma imagem de extrema força, por seu material e colosso, inclusive podendo estar e expressar uma idéia. A imagem, algo da qual o poder, em sua necessidade de força e duração, sempre dependeu: seja a dos relatos orais, a das flâmulas e pompa ou a criada e projetada pela máquina. Ao aniquilar o último corpo e sua respectiva imagem do filme, Bellocchio queima o demônio do poder com o fogo do apagamento. E pode, finalmente, impor a tela negra dos créditos finais.

Agosto de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta