Violeta Foi Para o Céu (Violeta se Fue a los Cielos),
de Andrés Wood (Chile/Argentina/Brasil, 2012)

por Andrea Ormond

Além da imagem

Produto do exótico Chile, o milagre de país que se estende como uma tripa vertical no oceano Pacífico, Violeta Foi Para o Céu revela uma outra Panamérica. A princípio, é do tipo que agradaria aos “homens do poder”, aos “dirigentes de organismos internacionais” e a todo o resto de substantivos e de adjetivos que envolvem megaeventos ambientalistas à la Rio+20: pobreza, camponeses, natureza selvagem. No entanto, o longa-metragem de Andrés Wood vê bem mais do que o catálogo dessas amolações. E nem trata da Panamérica sonhada por Glauber Rocha em delírio, mas sim de um continente azedo, que provocaria surtos de urticária em Victor Jara. Antigo residente do Estádio Nacional por carinhosa solicitação de Augusto Pinochet, Jara foi um dos muitos cantantes chilenos que praticaram voto de castidade à “guitarra de cantor, martillo de los mineros, arado del labrador”, como diria na bela “A Luis Emilio Recabarren”. Os garotos WASP de Costa-Gravas em Missing provavelmente associariam Victor a uma versão indígena de Joan Baez, atarantada com Joe Hill em Woodstock. Andrés preferiu Violeta Parra: a maior deidade chilena, o Brahma nativo que inspirou Victor e balançou-o nos braços, dando-lhe colegas de geração do naipe de Ángel Parra e Isabel Parra – seus filhos. Violeta é, portanto, uma criatura travestida de glória, a quem supostamente se respeita em escura submissão, no país que se ufanaria de rodear o abismo, de viver do salitre e de ter um deserto como o Atacama.

A pequena digressão nos leva a compreender dois pontos principais do filme. Primeiro deles: o exotismo e a mitologia do exotismo. Não basta ser latino-americano, ungido no sangue mapuche. É necessário destruir a carranca de Violeta Parra (Francisca Gavilán) e colocá-la como a mulher insuportável, auto-centrada que provavelmente foi, apesar do status de grande líder. Ao transferir para Ángel a tarefa de cuidar de uma irmã recém-nascida e – surpresa! – o anjinho morrer, Violeta revela a trintona que prefere cantar a Internacional comunista no grand monde a professar na prática o amor que dizia lhe mover a alma. Amor ao povo, às cantatas de cada micro pueblo, encarpado nas encostas, nos vilarejos sórdidos. Andrés Wood margeia a questão, mas o vínculo barra pesada com o falecido pai – professor e músico – parece explicar as obsessões de Violeta. Como se ao ouvir as músicas, ao anotar a tradição oral, ao criar, ao cantar, Violeta se reconectasse com o pai, fazendo o tal do religare, que os melhores livros de teologia ensinam ser a origem das religiões. Pagã, para Violeta Parra o pai era o divino.

Ao invés de se acomodar no modelito de Cândido, de beócio silvícola e encantador, Wood promove até mesmo o descarrego sexual. Adeptos do multiculturalismo, imaginemos o seguinte exercício de abstração: caminhando no frio desolador da Alameda Bernardo O'Higgins, coração da capital federal, surge um auspicioso terreiro, centro de consultas espirituais. Violeta escuta que um perna-de-carça acabará com sua vida e que é preciso uma oferenda na Cordilheira. Obviamente não existem semelhantes delícias afro-latinas, mas a certa altura do filme (e da vida) Violeta Parra se isolou aos pés da cordilheira dos Andes, criando um instituto de folclore. Preferiu se afastar de tudo e, ao mesmo tempo, celebrar o que sentia como primordial: a inquietação em torno da arte. Minutos antes disso, já a tínhamos visto na luxúria – e no espinhoso jogo que acompanha a ciranda sexual –, roçando as coxas, lambendo o rosto do jovem amado – o suíço Gilbert Favre. Green go, que a acompanha no périplo por Paris, aonde recebe o sonhado reconhecimento internacional. Algo equivalente à nossa busca pelo Oscar. A aceitação do externo, apesar de o externo ser achincalhado e as “raízes” serem colocadas como a razão de ser tudo o que se queira.

Consequentemente, chegamos aqui ao outro eixo de Violeta Foi Para o Céu: a ruidosa metafísica política. O filme reencena a entrevista de Violeta Parra à televisão, realçando o papel do entrevistador em um contraponto. Com o cabelo engomado e os óculos de aros grossos, o janota é responsável por tiradas que o colocam na categoria de “anti-comunista”. É também descendente de europeus – o que, à míngua de Darcy Ribeiro, explica uma das maiores diásporas latino-americanas: a miscigenação. Como a platéia ri das investidas preconceituosas do jornalista, percebemos que platéia e jornalista formam um bloco. Moralmente inferior, é claro, e que exatamente por isto acaba sendo destruído por Violeta em epifânica galhardia. Ágil como o lince; dura como o gavião. Aqui o filme – conscientemente ou nem tanto – faz de Parra um amuleto de todas as forças naturais, a corporificação de todas as lendas que – recordem –, ela procurava nas aldeias do país. Cada resposta soa incontestável, cada verdade possui certeza milimétrica. Sentada diante das senhoras de laquê que a perscrutam; feia, desgarrada, bruta, Violeta Parra desconstrói as máximas da pureza televisiva. Vence o aparelhamento capitalista e frio da televisão, com a mais recôndita das autoridades: afinal, é ela a biografada, é ela o objeto de desejo.

Até o instante em que o llanto se impõe e Violeta cai de joelhos. Mas a queda ocorrerá por motivos íntimos – “ay de mí, ay de mí,/ mis gemidos confunden al viento” – que não a estrutura social, manipulada com facilidade pela cantora-tecelã-pintora. Quando xinga os comensais de uma festa, que indicam para ela a cantina dos empregados, Andrés Wood a faz desfilar com uma gravidade de imperadora. Aplaudida como César pelos convidados que nem chegam a entender a rebeldia do ato: são eles os estúpidos, são eles os estanques, os monotemáticos, as figuras de almanaque. O jogo de classes continua, sendo apenas domesticado pela atitude aristocrática do lúmpen. Passando ao malabarismo das relações pessoais, Wood coloca Violeta como refém do desconhecido. A heroína vulnerável, brincalhona da própria morte. Contraditória, porque apesar de comungar do amor livre, gostaria de ter um carinho todo seu – “Tal vez te habrás olvidado que hiciste un juramento”. E ama Gilbert, o rapaz doce, oriundo do lado de lá do estamento.

O filme escapa das armadilhas que dão desgosto em A Novela das Oito – no qual descobrimos, por exemplo, ter havido guerrilha urbana no Brasil de 1978. Se fosse primo do brasileiro, Andrés Wood colocaria na boca de Violeta algumas frases sobre o golpe de Pinochet, apesar de La Moneda ter explodido seis anos depois do suicídio da cantora. Percebe-se a compreensão do que é analisado nas telas: tanto a narrativa fragmentada quanto a história de Parra e o seu vínculo com a alma do futuro. Violeta Foi Para o Céu não confunde os quilombos da memória pessoal com uma realidade risível – apesar de nitidamente prestar a elegia a algo que lhe parece tão caro e pessoal. O encanto por Violeta, a tentativa de fazê-la mais próxima, como se lhe desse a oportunidade de, finalmente, beijar o rosto do pai.

Junho de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta