in loco - cobertura dos festivais
Estar só
Palhaços; Elefante Invisível; Com Vista para o Céu
por Raul Arthuso

Deixar os longas-metragens momentaneamente de lado parece oportuno por ser muito claro como o Festival de Vitória se propôs, neste ano de 2012, a uma assinatura mais forte da curadoria dos curtas-metragens. Pela oportunidade de ter um contato mais cuidadoso da revista com os curtas, penso ser mais proveitoso uma abordagem que parta deles, sem, contudo, querer esgotá-los ou dar conta de toda a produção. A crítica que mais me interessa é aquela que, como num golpe de recusa da ordem mercadológica do cinema, realiza escolhas. Escolhas de ordem estética e moral. O crítico é um pouco um curador de seus sentimentos ante os filmes. Pois os filmes estão essencialmente sós. É quando encontram um espectador – qualquer um – são, então, colocados em algum contexto que os ressignifica. Estar só no mundo – como os filmes diante de boa parte do público, especialmente o curta-metragem; como os críticos muitas vezes diante dos filmes – é um dos leitmotifs mais recorrentes do cinema atual. No caso brasileiro, é uma constante em enfoques da vida urbana e dos deslocamentos possíveis nesse espaço. Não parece acaso que dois curtas da Mostra Corsária – Palhaços, de Andy Malafaya, e Elefante invisível, de Elisa Ratts – encenem um mesmo plano para marcar o isolamento de seus protagonistas: o personagem anda sozinho no meio da rua, afastando-se da câmera e se perdendo no horizonte ao fundo do quadro.

Evidente que são duas formas tão diferentes de ver o mundo e lidar com ele quanto a diferença entre os cinemas carioca e cearense. Contudo, não deixa de ser curioso esse sinal. Em Palhaços, Malafaya lida com um mal-estar simbólico a partir de um clima de ficção científica apocalíptico. O personagem é assombrado pelo demônio da solidão em um espaço arquitetônico mais próximo de uma fortaleza que de um lar. O apocalipse de Palhaços não é feito de sombras e podridão, mas de sol e lixo no chão: a cidade parece recém-abandonada e não apodrecida pela vacuidade, dado fundamental para entender a postura do filme diante da solidão da qual trata. Seu protagonista, longe da apatia, vaga pela cidade com a esperança de uma salvação; busca se entender, procura o mundo e, no mundo, algo a se agarrar. É fundamental a pichação na parede, na qual o protagonista se detém, nu, escrita "Reconstituição": o protagonista de Palhaços foge de sua prisão solitária – o apartamento inteiramente branco, o frustrante elevador – para o mundo no qual encontra apenas um vazio que o devolve ao estado inicial de se encerrar consigo no apartamento novamente. É um ciclo demoníaco cuja imagem mais potente marca a impotência de si, pois o homem se afasta da câmera e perde-se no horizonte para ser aprisionado de novo pela montagem em seu cativeiro de solidão. Ao cinema, resta encenar essa solidão e construir uma realidade aumentada e pervertida. Aqui, o inferno é estar só.

Essa possibilidade do cinema enquanto encenação da solidão é fundamental também em Elefante Invisível, de Elisa Ratts. Primeiro, porque a postura em relação ao mundo é oposta à de Palhaços: não mais o mundo é um desdobramento, mas a causa em si. A Fortaleza de Elefante Invisível é, ao contrário do espaço simbólico de Palhaços, um lugar bruto, realista, primitivo, faz-se das coisas elementares da vida do jovem protagonista – a escola, os amigos, a família. O vazio do mundo é relativo ao prazer. O protagonista perambula pelos espaços seguindo um certo esquema de acting melancólico, e a desdramatização realça a impossibilidade de sentir o gosto do mundo. Em dado momento, o garoto joga futebol com os colegas, mas é tomado de uma paralisia ao perceber toda sua inutilidade. Como num existencialismo mais primitivo, há o questionamento das coisas, do mundo ao redor, da razão de pertencimento a um conjunto insípido, seja ele o bairro ou a família. O protagonista se perde no horizonte ao final do filme. Em negação a tudo isso, escolhe o caminho do outsider. Ratts repete o mesmo processo de Os Monstros em versão pocket: dar a ver o primeiro plano – a vacuidade do mundo ao redor, as insuficiências de prazer –, mas negar o contraplano – a resposta, a agressão, o embate – para recusar esse mundo. O resultado é um autismo semelhante, também sensível por uma cena alegórica, porém com menos potência de convencimento. De qualquer forma, é melhor estar só.

Por outro lado, há Com Vista para o Céu, de Allan Ribeiro, no qual o espaço, em vez de um lugar simbólico ou um brutal catalisador do isolamento, é a dimensão sensível da distância que envolve estar só no mundo. Há uma construção da montagem reforçando a geometria da arquitetura dos edifícios como fator de repressão ao contato direto entre as pessoas que compartilham o mesmo lugar. As formas ganham potência com superenquandramentos que reduzem as pessoas, suas luzes e seus sons, a traços encaixotados na paisagem. Impressiona que, mesmo em seus planos mais abertos, Com Vista para o Céu é um filme em que todos os planos são "fechados" – há sempre uma linha, uma forma geométrica, um objeto que impede que o plano respire plenamente; sempre se está apertado pela geometria do lugar.

Porém, o filme vislumbra uma possibilidade de comunhão através da música, paradoxalmente, a arte na qual o trabalho com sua forma pura seja o mais evidente – forma que, na imagem, é agente da repressão do contato no filme. A música que um homem toca em seu aparelho de som é respondida por uma vizinha desconhecida, iniciando um breve e incompleto, porém promissor dueto. A partir desse momento, o foco narrativo que estava no cotidiano do homem passa para o dia-a-dia da mulher, deixando clara a potência do cinema como meio de possibilitar uma comunhão entre co-habitantes que a realidade separa. Mais especificamente, a montagem de cinema: é pela articulação dos planos cerrados repetindo a observação da semelhança dos cotidianos das duas personagens que se percebe o quanto essas pessoas têm suas relações abortadas por um contexto histórico-social materializado na arquitetura de caixote do edifício-locação do filme. Elas fazem as mesmas coisas, compartilham o mesmo gosto musical, a mesma vaidade, a mesma relação com seu caixote particular. A montagem espelhada de suas ações realiza uma comunhão espiritual possível só pelo cinema, pela encenação do campo e do contra-campo, o uso das ferramentas de montagem como forma de romper com a lógica dos caixotes dessa arquitetura. Não surpreende que o contato entre elas realizado pela montagem não se dá quando eles compartilham o mesmo espaço, na cena final do elevador – a presença física mútua numa jaula não garante a plenitude daquilo que o cinema possibilita enquanto linguagem, discurso e espírito. Estar só no mundo é um mero acaso, o qual o cinema é capaz de superar.

Novembro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta