in loco - cobertura dos festivais
Dessacralizando purezas
Sala de Milagres; Menino do Cinco; Mais Denso que Sangue; Primas
por Raul Arthuso
Em seu momento mais simbólico e, por outro lado, que mais evidencia suas intenções, Sala de Milagres, de Cláudio Marques e Marília Hughes, põe em cena um batismo ao contrário: submersa, a câmera se "purifica" saindo com certa veemência da água, como um furioso mergulho invertido. Se Adão e Eva cobriram seu sexo após a tomada de consciência de suas vergonhas expostas, o caminho em Sala de Milagres é o de um desnudamento das "vergonhas" do lugar retratado, conhecido mais amplamente pelo lado religioso, geralmente abordado pelas reportagens televisivas por seu exotismo. Contaminando a pureza que envolve a sala dos milagres – objeto do documentário – e seus rituais, Marques e Hughes mostram as festas, os bares, os puteiros, os inferninhos, o lado B do sagrado, como a marcar a outra margem do rio por onde corre a pureza.
Esse gesto motor de Sala de Milagres se espalha em diferentes lugares de alguns filmes. Longe de serem obras inteiramente iconoclastas, seu interesse reside em, no mínimo, contaminar a pureza associada com o que os filmes lidam, seja a infância, no caso de Menino do Cinco, de Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira; o código do cinema de gênero em Mais Denso que Sangue, de Ian Abé, ou a memória e o cinema em si, em Primas, de Salomão Santana.
O caso de Menino do Cinco parece exemplar nesse sentido.
Em boa parte da produção corrente, a infância
foi elevada a um campo simbólico privilegiado para observar
as questões cotidianas, como se na pureza infantil residisse
um potente telescópio capaz de nos aproximar dos grandes
problemas. Para além da moral rosseauniana inocente
encontrada aí, esse espaço imaculado fica apartado
dos problemas com que muitas das produções lidam,
na medida em que só se pode olhá-las, ou sofrer
com elas, de uma distância segura. Não que Menino
do Cinco não lide com questões e não
use a infância para problematizá-las. O filme não
esconde a luta de classes e a questão racial que corre
em paralelo à narrativa principal – um menino branco
de classe média recolhe em seu apartamento o filhote de
cachorro que
pertencia a um menino de rua negro. Também, o filme não
se furta a sugerir o apartheid de afeto natural do estado
de vigilância das grandes cidades brasileiras em que os
edifícios residenciais seriam o grande símbolo do
isolamento das pessoas contra um mundo aparentemente ameaçador.
A grande sacada de Menino do Cinco está exatamente
em sugerir essas questões através do confronto.
As diferenças que colocam as duas crianças em realidades
opostas serão o motor de seu embate: o menino de rua tentará
romper o espaço de segurança para reaver seu único
amigo no mundo, enquanto o garoto protegido pelas grades e câmeras
de segurança fará de tudo para não ficar
mais sozinho. Esse tour-de-force se sustenta em sagacidade,
perversão e crueldade de alguns dos atos das crianças,
dados inteiramente apagados pela produção recente
que lida com o universo infantil. O espaço de pureza é
aqui expulso do paraíso nesse mundo de ímpetos.
Não seria, então, a criança um campo de batalha
dos impulsos primeiros?
Na primeira cena de Menino do Cinco, o garoto branco vaga por sua casa sozinho, brincando solitariamente com seus carrinhos e bonecos, num apartamento que o isola ao mesmo tempo em que cria um autismo de sentimentos. Já o garoto negro, jogado no espaço urbano, tem no cachorro seu único contato afetivo com o mundo, um fio pronto a se romper. A força de Menino do Cinco é catalisar as questões sociais, raciais e afetivas de suas personagens em impulsos primeiros descontrolados, um instinto de sobrevivência próprio do ser humano, cujo equilíbrio é ainda bastante fugaz numa criança. A crueldade demonstrada tanto por um quanto pelo outro no embate final não é apenas um ataque à pureza por si só ou um efeito, mas o atestado de que todas as questões do meio afetam intensamente essas personagens. A infância passa de um lugar de pureza para observar o mundo a um campo aberto a ser observado pela facilidade com que pode ser contaminado por esse mundo impuro.
A contaminação é de outra ordem, mas está
latente também em Mais Denso que Sangue, de Ian
Abé. No caso, o gênero é a pedra de toque.
Logo na primeira sequência, uma revelação:
o protagonista estampa nas costas uma tatuagem da primeira cena
de Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone. O faroeste
será sua herança, a história do cinema é
a sombra que acompanha a personagem em seu périplo. Porém,
o filme não é apenas uma emulação
pura do faroeste, nem de sua versão mais impura, o faroeste
spaghetti. A começar que o forasteiro vingador
não está no Texas, mas na Paraíba; não
é John Wayne nem Clint Eastwood, mas um caboclo qualquer;
não
é xerife nem herói, mas um homem que se sabe apenas
estar com raiva. Se, como afirma Eduardo Valente na cobertura
do 11º Festival Brasileiro de Cinema Universitário,
Mais Denso que Sangue “exibe um real sentido de
urgência de existir enquanto universo autônomo que
partilha da história do cinema, mas não depende
dela para construir sua força”, é produto
de se olhar para o gênero apenas como um modo de aproximação
das coisas, uma forma aberta muito bem transmutável de
acordo com o seu entorno. Como a infância em Menino
do Cinco, o faroeste de Ian Abé é um embate
com o meio, um diálogo natural possível e nada inocente,
ainda que sincero. Um diálogo de dessacralização:
em vez de heróis e vilões em cavalos, pistoleiros
em motocicletas; o deserto da rua principal da cidade transformada
em uma ponte sobre um rio.
Isso se mostra mais claramente na transfiguração da gangue de pistoleiros como uma trupe vestida de Jesus e seus apóstolos para uma encenação da paixão de Cristo em praça pública. Essa urgência heavy metal de iconoclastia, se muito própria de alguns cineastas de gênero (Peckinpah, Leone, Argento), não é resultado de uma inocência, mas de um cineasta aberto ao improvável e inflamado por um inusitado espírito de aventura. Evidente que, quando herói e vilão emulam um duelo de faroeste avant la lettre, fica exposta certa inocência juvenil – algo frágil diante do resto do filme. Porém, o tiro final no vencedor do duelo, dado pelo motorista do carro de som que fazia a sonoplastia da encenação da paixão de Cristo, denota o quanto Mais Denso que Sangue é feito de uma postura de ousadia diante do cinema, já que os ícones do faroeste não sairão vivos da brincadeira. O filme entende o gênero como uma forma mutante, prontamente uma bomba nas mãos de qualquer cineasta insolente.
Esse assalto à pureza do cinema é intensificado em Primas, novo filme do cearense Salomão Santana. Partindo do mesmo procedimento do cinema found-footage de seus curtas A Curva, Jarra de Peixe e Roberto Cabeção, Santana desta vez articula imagens de um dia ensolarado às margens do açude de Oróz com uma música que poderia ter saído de uma cena de filme pornô e uma narração edificante na voz do ator Francisco Cuoco, em algum momento do auge de sua carreira. Contudo, se seus três filmes anteriores acima citados carregavam ainda uma forte ligação com a memória e a tentativa de criar uma narrativa cinematográfica a partir de um registro, Primas vai romper com esses dois parâmetros, a começar pela narrativa, a qual em nenhum momento Santana parece almejar. Primas se faz de repetições de planos, de descontextualização, da negação a criar uma história em imagens que não as têm por natureza. O filme carrega em si uma forte ironia para com o material – nega-lhe o caráter puramente memorialístico que tanto as imagens quanto a narração de Cuoco trazem para, num autêntico ready made, transformá-las em um objeto alienígena que transita entre a campanha boa-praça de um Criança Esperança e os boçais vídeos de auto-ajuda do YouTube. Em um ato, Primas implode a memorialística, o cinema e o próprio cinema de Santana.
No debate sobre o filme, o diretor falou sobre seu fascínio com GIFs animados da internet, técnica muito popular em websites de humor em que fotos seqüenciais são animadas, produzindo curtas “animações”, enfocando um breve instante repetido em loop. A grande característica do GIF animado é potencializar um gesto, um olhar, um movimento que, isolados por essa técnica, ganham uma força que originalmente não possuíam, não fosse essa repetição. Primas, nesse sentido, é um mash-up de arquivo que tende ao GIF animado: a mistura dos materiais na curta duração do filme reforça os aspectos mais secretos de cada um deles, transfigurando a solenidade da narração em uma vacuidade escondida por trás de seu conteúdo edificante e revelando todo o prazer daquele momento filmado – tanto do objeto filmado quanto de quem filma – que parecia apenas singeleza enquanto registro. Primas, um pouco como as personagens, é mergulhado nas entranhas desse ready made moment. O cinema é contaminado pelas particularidades de coisas tão estranhas a ele – a auto-ajuda televisiva, o ready made, o mash-up, o YouTube – para chegar em lugares tão particulares ao cinema: a revelação do prazer e a exposição da vacuidade da camada superficial do visível. A afirmação do cinema como arte mutante e devoradora. No fundo, é uma contaminação do cinema que reforça o próprio cinema.
Novembro de 2012
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