in loco - cobertura dos festivais
A distância do outro (e seus rituais)
Dizem que os Cães Vêem Coisas; Porcos Raivosos
por Raul Arthuso

Dois olhares muito distintos dentro da produção de curtas-metragens brasileira marcam um contato com o outro. Curiosamente não é a primeira vez que Dizem que os Cães Vêem Coisas, de Guto Parente, e Porcos Raivosos, de Isabel Penoni e Leonardo Sette, são exibidos na mesma sessão de um festival. Se são dois filmes cujo olhar é voltado para o outro, suas pulsões não poderiam ser diametralmente opostas: a recusa total em Dizem que os Cães... e a tentativa de conciliação – talvez impossível – em Porcos Raivosos.

Discordo do colega Pedro Henrique Ferreira em sua recente cobertura do CineOP quando analisa Dizem que os Cães Vêem Coisas: se por um lado, ele vai bem quando afirma que Parente romantiza o olhar do cão, tratando-o como um radar privilegiado dentro da festa que se desenrola no filme, alguma coisa lhe escapa quando diz: “Ao mesmo tempo em que se coloca como um membro efetivo daquele lugar, o diretor se distancia em isolamento”. Pois não há adesão nem isolamento, mas recusa seguida de espancamento. Parente usa das ferramentas mais chulas possíveis, um humor escroto, rasteiro e afetado para bater sem parcimônia no mais antigo cachorro morto da era moderna (a burguesia). Não há um processo de esvaziamento, mas um pain-de-France recheado com escatologia.

O momento mais significativo desse olhar de recusa do outro se dá quando a comida é servida: os garçons e os convidados bem vestidos e emperiquitados avançam como selvagens. Um corte sinistro revela um homem desfazendo o laço que amarra as coxas do frango assado enquanto um sem número de insetos fazem a festa em volta do banquete. Em outro momento, uma madame come com os olhos um jovem jogando vôlei só de sunga, enquanto um outro homem mira, babando, seus seios gigantes. Claro que os cães vêem coisas, mas não é preciso ser cão para ver o que Parente está realçando. O filme se faz de expor aquele universo burguês de butique como uma zorra total – portanto, da vulgaridade, dado essencial que essa nova burguesia teima em esconder.

O humor de recusa do filme – escroto e cruel –, esquisito dentro da produção corrente do cinema brasileiro, é desconcertante como Falcão, cantor da música dos créditos finais, cujo nonsense-brega é uma distorção do bom gosto romântico burguês, um napalm implosivo. Dizem que os Cães... é um filho bastardo da burguesia. Um filho revoltado que registra a escrotidão da festa da família e manda ver no YouTube. E como seu irmão ilustre, o punk rock, grita em alto falante para desvelar o segredo que a burguesia fede, mas tem dinheiro pra comprar perfume.

Já o intento de Porcos Raivosos é de outra natureza. No primeiro plano, uma índia entra na oca em quatro patas, imitando um animal selvagem (pressupõe-se um porco), como uma atriz entrando num palco. Este é o procedimento mais evidente do filme: um grupo de mulheres indígenas reencena uma de suas tradições para a câmera. A mise en scène transforma um ritual de natureza interna (só seus atores o acessam com plenitude) para o exterior. Há um desejo de conciliação, portanto, um élan em conhecer as tradições do outro para estabelecer uma possível comunhão entre interior (a tribo indígena) e o exterior (a comunidade branca), quase que numa inocência pedagógica de não se deixar perder a tradição das índias mostradas no filme pelo descaso ou destruição da “civilização”.

Esse mea culpa que leva ao ato de filmar se mostra logo em seguida inútil. A beleza de Porcos Raivosos está em reconhecer a distância entre a tradição e o olhar. Essa distância é inerente à apropriação pelo cinema desse ritual, pois, a partir do momento em que é realizado para ser filmado, o rito passa a ser “nosso”. Como a experiência do Gato de Schrödinger, o olhar para a experiência em curso determina seu resultado. Há, então, um constrangimento do olhar, sabendo que ele contamina a cultura que registra. Eis o grande trunfo de Penoni e Sette: incorporar ao filme a distância entre o “ritual de verdade” e o “ritual filmado” deixando evidente o constrangimento onde a maioria dos filmes do gênero tenta apagar as arestas e tornar o objeto filmado “mais autêntico”. Quando em sua parte final, os diretores mostram parte da oca sem teto e paredes, vendo-se ao fundo um jogo de futebol com crianças indígenas vestidas com calções e camisetas, Porcos Raivosos ultrapassa o terreno de um belo filme registro do outro para assumir-se como parte da contaminação que torna cada vez mais distante a possibilidade de um filme com indígenas “autêntico”.

É interessante notar que tanto Dizem que os Cães... quanto Porcos raivosos armam seu jogo em relação ao outro a partir de rituais coletivos – uma festa no primeiro; uma lenda mitológica no segundo. Não há um acesso a esses dois mundos tão opostos pela via do drama burguês, com conflitos no âmbito individual carregados pela sentimentalidade como representação de anseios e contradições coletivas. Mais que idéias ou narrativas, a forças dos dois filmes está em uma postura: arriscar-se num enfrentamento de classes, de culturas, de povos, de visões de mundo.

Novembro de 2012

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