in loco - cobertura dos festivais
Imanências do efêmero
Charizard; A Onda Traz, o Vento Leva
por Raul Arthuso

Como aponta o catálogo do festival no texto de abertura da mostra competitiva de curtas deste ano, a primeira frase ouvida nas sessões é um taxativo “Vocês não sabem o que é o cinema!”, dito por um missionário Manoel de Oliveira encarnado pelo cineasta Paolo Gregori no filme de João Marcos Almeida Meu Amigo, que Trabalhou com Manoel de Oliveira, que Fez Cem Anos. Ainda nessa cena, Oliveira/Gregori repete várias vezes ser o cinema “a imanência do efêmero”. Imanência do efêmero: o poder de perpetuar paixões saídas do fugidio. O cinema é, então, uma das mais eficientes ferramentas para lidar com a fragmentação da existência sensível, partindo de uma organização imagética e sonora na tentativa de construir algum sentido de ordenação do mundo, das idéias, das sensações, da vida. Organizar o efêmero para perpetuar sua existência. Ou ainda, nossas existências.

Colocar, então, lado a lado Charizard, de Leonardo Mouramateus, e A Onda Traz, o Vento Leva, de Gabriel Mascaro, para falar de imanência do efêmero é reconhecer duas potentes expressões do cinema, uma vinda de um jovem realizador na casa dos vinte anos, cuja força está justamente na insolência de uma visão ainda em formação, na busca por uma identidade e um cinema próprios, por um lado, e outra de um cineasta mais experiente, demonstrando raro domínio de seu ofício. Os dois filmes, por sua vez, tentam dar conta de uma vivência e recuperar pelo cinema um pouco da personagem e seu entorno.

A Onda Traz, o Vento Leva pode, à primeira vista, ser tomado como um decalque de Avenida Brasília Formosa, longa de Mascaro sobre o bairro Brasília Teimosa em Recife. Se os dois filmes compartilham o gosto pelo filme de fluxo, pela alternância de modulações do ritmo interno dos planos e da montagem, há uma diferença de registro evidente.Pois lá onde Mascaro tinha um claro desejo de se dissolver num espaço e tempo definido, aqui o jogo se dá muito mais em observar seu protagonista e construir uma narrativa a partir dele, permanecendo uma marcada – e bastante interessante – distância.Essa distância, entretanto, não é irmã do cinismo de Um Lugar ao Sol, mas um gesto de observação do cotidiano do protagonista, invertendo a lógica do personagem que pertence ao plano, para fazê-lo do personagem – um gesto inicial de alteridade.
O protagonista surdo, mudo e portador do vírus HIV é uma pessoa tão comum quanto exótica, tão sobrevivente quanto pueril, tão sagaz quanto inocente. No fundo, há um fascínio pela personagem em suas ações cotidianas, cuidando de uma filha pequena, assim como há um espanto por seu sincero diálogo com o amigo na praia em que conta de uma relação sexual com uma negra com pêlos pubianos oxigenados e corpo de violão. Esse misto de fascínio pela engenhosidade de seu trabalho no conserto de amplificadores com a surpresa por sua safadeza geral só se estabelece na distância de olhar do realizador – a câmera parece na maioria das vezes esconder-se atrás de vigas, objetos, pessoas – inédita no cinema de Mascaro até o momento.

Na cena mais surpreendente do filme, o protagonista conta a seu médico não usar camisinha em suas relações sexuais, ao mesmo tempo em que, como um legítimo malandro, diz não se relacionar com ninguém há muito tempo, ainda que algumas cenas atrás a câmera tenha flagrado a já citada conversa na praia. A câmera olha o cotidiano e, além disso, o flagra repleto de um espírito de curiosidade. A coreografia das cenas em A Onda Traz... se faz como alguém camuflado para descobrir e ressaltar um mistério. O gesto é, assim, oposto ao desligar a câmera e deixar o som ligado, na mais famosa entrevista de Um Lugar ao Sol. Se não havia nada de efêmero naquele momento de confronto, A Onda Traz... é um resgate da curiosidade, do sentimento de lidar com algo que escapa aos olhos, do inexplicável que o cinema é capaz de resgatar.

Esse sentimento não está muito distante de Charizard. O filme é a reconstituição de um momento específico da vida das personagens. Diferente de A Onda Traz..., não se trata de olhar e sim relembrar. Mas o curta de Mouramateus é também um filme de fascínio, de curiosidade, de uma tentativa de lidar com o mundo. Os planos parecem entidades vivas, orgânicas dentro do jogo dos corpos no quadro e da orquestração de tempos a partir das ações em cena. Charizard encena tanto um beijo do casal na cama quanto uma briga como uma dança na qual o palco é o quadrilátero da imagem, e o tempo da pulsação é o plano. As personagens dançam na tentativa de fugir desse limite do quadro e do plano, para descobrirem que sua dança só existe dentro desses parâmetros. Então, se a narrativa é a de um triângulo amoroso – a mais extraordinária e efêmera das narrativas – o filme é uma ciranda de fascinações baseada na música eletro-pop e no choque dos corpos contra os limites do quadro.

Aprisionados no quadro como a uma lembrança que teima em ser rememorada, a coreografia das ações simples é uma luta da memória em refazer a história, uma imanência contra a qual se debate, mas que reforça seu lado inevitável. Num dos momentos mais intensos do filme, Virna, objeto de desejo do protagonista e seu rival, dança em frente a um espelho tentando seduzir o protagonista que só pode ser visto pelo reflexo. Não vemos seu rosto, apenas seu sensual e persistente gingado. A fixação desse rebolado no plano é produto de uma imanência desse movimento na vivência, como uma tatuagem. O mesmo plano que fascina conduz ao abismo. Esse mistério é o material vivo de Charizard. Suas elipses de tempo, espaço e sentimento são abismos tanto da memória quanto da atitude, por vezes heróica, de existir. Mouramateus realiza em Charizard um dos ideais da arte de reencenar vivências esparsas no mundo para devolvê-las como uma forma de pensamento, uma experiência.

Novembro de 2012

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