in loco - cobertura dos festivais
Posturas do dispositivo
Piove, Il Film di Pio; Retrato de uma Paisagem; Câmara Escura
por Raul Arthuso

É interessante colocar em conjunto três filmes cuja força do dispositivo é tão clara: Piove, Il Film di Pio, de Thiago Brandimarte Mendonça; Retrato de uma Paisagem, de Pedro Diógenes; e Câmara Escura, de Marcelo Pedroso. Por mais que os dispositivos chamem bastante a atenção, a principal discussão aqui me parece girar em torno de posturas. Esse deslocamento é importante. Sempre me pareceu superestimada a discussão que se avolumou durante os anos 2000 em torno do dispositivo dos filmes documentais. Duas balizas talvez sejam de vital importância dentro desse processo: Eduardo Coutinho e o crescente sucesso de seus filmes, cada vez mais bem sucedidos na conjunção do dispositivo como ponto de partida com o ponto de chegada; e a Símio Filmes, cuja pesquisa em torno no dispositivo em filmes como Pacific e Um Lugar ao Sol levantou muita poeira na estrada. A força dos dispositivos que movem Piove, Retrato de uma Paisagem e Câmara Escura reside muito mais então na postura dos cineastas frente a ele e ao tema que do próprio dispositivo em ação. Por outro lado,  isso deixa claro o passo representado pelos filmes na obra de seus respectivos cineastas.

I - Mostrando a caixa

Piove, Il Film di Pio não é apenas uma nova incursão de Mendonça no retrato da Boca do Lixo, como uma mudança de relação com esse universo. Minami em Close-up tinha um desejo de embrenhar-se nas entranhas de um bairro (o centro de São Paulo), um tempo (o auge da Boca) e um cinema específico. Ainda que não fosse para emular tudo isso, o trabalho historiográfico era fundamental: o resgate de fatos, pessoas, lugares. Piove, por sua vez, tem na força de seu dispositivo uma carta de intenções das mais claras. O filme se faz pelo encontro de Mendonça com Pio Zamuner, diretor de vários dos filmes de Mazzaropi. Mais que entrevistado, Pio dirige a entrevista – diz onde se deve colocar a câmera, o tamanho do plano, quando cortar, mexer, fechar ou abrir o plano. O retrato de Pio se expande de olhar uma pessoa para olhar um conhecimento, um modo de fazer cinema que, condenado ao esquecimento, corre o risco de se perder.

Uma das questões possíveis de se levantar a partir disso é o próprio significado da Boca do Lixo dentro da história. A maioria das vezes que dela se fala emana uma “estética Boca do Lixo”, a consagração de alguns procedimentos ligados a filmes-chave de uma determinada época dentro do conjunto de títulos produzidos pelas produtoras do centro de São Paulo. Assim, é possível enfileirar referências a O Bandido da Luz Vermelha, a filmes mais conhecidos de Candeias, de Carlos Reichenbach – um universo que, se muito sedutor e realmente merecedor de ser resgatado dentro da história do cinema brasileiro, especialmente pelo obscurantismo ao qual ficou relegado durante vinte ou trinta anos, é também um conjunto restrito de filmes dentro de toda a produção da Boca. Então, pensar, citar, emular a Boca do Lixo tem seu alto risco de reduzi-la aos grandes momentos de seus egressos mais ilustres. Isso carrega, em si, certa inocência, que Mendonça evita.

O “click” de Piove é não apenas reconhecer um tipo de cinema feito na Boca que não é a “estética Boca do Lixo”, mas também, num gesto de amizade e paixão únicos, permitir-se pôr em cena esse conhecimento – que, contrariamente ao que se pensa ou se gostaria de admitir, carrega em si uma série de procedimentos, de empirismos, de truques, ou seja, uma técnica. Pio, ao mesmo tempo que dirige a câmera de Mendonça, faz uma demonstração de sua arquitetura fílmica, construída ao longo de uma vida profissional no método de tentativa e erro. O dispositivo de Piove foge da emulação, da historiografia, da homenagem, mas ao mesmo tempo realiza tudo isso ao construir uma mise en scène documental das mais sofisticadas, uma pedagogia bastante complexa e eficiente no gesto de encenar uma técnica de direção cinematográfica e dar a ver um conhecimento ignorado pela história, ameaçado de se perder no limbo. Piove é feliz por transmitir esse conhecimento ao colocá-lo em ação, em vez de tentar resgatá-lo. Ver é sempre mais prazeroso.

II - Saindo da caixa

Retrato de uma Paisagem, de Pedro Diógenes, guarda alguma semelhança com Ex-isto, de Cao Guimarães: há no filme um personagem-mediador do contato do realizador com o entorno. A diferença básica é que, enquanto o mediador de Guimarães se perde e se encontra num tempo e lugar estranhos a ele (nesse sentido, é quase uma ficção científica), o mediador ficcional de Retrato... serve de alavanca na tentativa de chegar nesse mundo (justificando seu papel de mediador). Não fosse a câmera acompanhá-lo de perto e mostrar seu caminhar na contramão (literalmente) das ruas de Fortaleza, o protagonista poderia muito bem se passar por alguém comum.

Há outra diferença crucial em relação a Ex-isto: o filme de Cao Guimarães se volta para a relação interior/exterior da personagem; Retrato... é uma inquisição. Primeiro pelo ato: o protagonista sai pelas ruas interpelando as pessoas, interagindo ativamente com os passantes, pessoas que trabalham nas galerias pelas quais ele perambula. Segundo, ressoando o julgamento católico do século XVII, porém com sinal invertido: o personagem investiga crenças, ideologias, sonhos, utopias ausentes em seus inquiridos, para chegar na afirmação dos idealismos.

Retrato... não parece outra coisa que não uma tomada de posição – ou antes, uma necessidade de tomada de posição. O filme parece marcar uma mudança sensível nos rumos do cinema da Alumbramento (pelo menos do núcleo responsável por Estrada para Ythaca, Os Monstros e No lugar errado). Os lançamentos de Dizem que os Cães Vêem Coisas, de Guto Parente, Retrato... e agora Não Estamos Sonhando, de Luiz Pretti, marcam o desejo de encontrar o mundo, olhar para o meio e ir de encontro a ele – na contramão como o personagem-mediador de Retrato..., em choque direto como em Dizem que os Cães... ou num vôo reflexivo em Não Estamos Sonhando. São filmes descontentes com a “caixinha do Novíssimo” que denotam uma abertura ao enfrentamento. É simbólico, nesse sentido, o personagem-mediador de Retrato..., já que ele acaba – supõe-se que voluntariamente – de largar o emprego e sai pelas ruas contestando o torpor diário das pessoas, transparecendo uma relação idealista com o sonho, o desejo, a vida. A pergunta que melhor resume essa relação é “se eu tivesse resposta para todas as perguntas, que pergunta você me faria?”, questão desconcertante, pois destrói de início qualquer postura puramente prática do inquirido, e ao mesmo tempo profundamente idealista, pois válida numa relação teórico-reflexiva.

Retrato... é o mais palpável apontamento dessa mudança de vetor de um cinema voltado ao interior que se abre para o exterior. Retrato..., Dizem que os Cães... e Não Estamos Sonhando são os filmes mais desajeitados desse grupo de realizadores, deixando evidente o desconforto de “sair da caixa” sem saber muito bem como lidar plenamente com isso. Há questões de método, dispositivo e relação com a ficção ainda mal ajambradas. Parece, contudo, haver uma busca, uma vontade de lidar com o mundo, como a criança aprendendo a andar, tomando contato com os objetos ao redor, criando uma relação com o espaço, com sua sensibilidade e a possibilidade de queda.

III - De volta para a caixa

Esse dado que Retrato... carrega não vem do nada. Ecos do trabalho de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso são vistos ali, ainda que pela via contrária: o principal aspecto dos filmes de Mascaro e Pedroso é a pesquisa formal, a busca pelo dispositivo ideal, para daí chegar ao confronto com o mundo. Dentro desse eixo que aconteceram as grandes discussões em torno de Um lugar ao Sol, Pacific, Avenida Brasília Formosa. Marcelo Pedroso, por sua vez, tem uma busca tão paradoxal quanto interessante: o dispositivo perfeito para o descontrole. É buscar a não-filmagem, a não-direção, a não-manipulação da captação das imagens. Ou como o fragmento de Stan Brakhage citado em Câmara Escura “Imagine um olho não pautado pelas leis da perspectiva, sem preconceito de composição lógica, que aceite ter uma percepção da vida cheia de aventura”.

É interessante pensar que todo o cinema de Marcelo Pedroso parece convergir para o dispositivo armado em Câmara Escura: uma caixa de madeira onde se coloca uma câmera. Essa caixa é, então, deixada na residência de pessoas ricas para que suas reações ao abri-la sejam captadas sem a intervenção do aparato cinematográfico. Cria-se, assim, um duplo paradoxo: o ideal da não-filmagem está ligado diretamente à reação captada pela câmera mediada pelo surpreendente fato de uma caixa aparecer do nada na casa das pessoas, tirando de cena a naturalidade de situação; cria-se um confronto com o mundo desconhecido sem na verdade haver um confronto, já que o realizador nunca está presente no ato filmado. O confronto sem o desconforto.

Emana o dispositivo. Sua força é maior que o filme e Câmara Escura é um filme de possibilidades apenas – o que o dispositivo pode proporcionar, a relação que pode surgir entre realizador e o material captado sem sua presença, as relações éticas implodidas pelo método, as discussões sobre quem tem direito de filmar quem (tocadas de raspão no plano em que ouvimos um dos “presenteados” com a caixa de Pedroso reclamar de sua atitude enquanto, do lado de fora da casa, a imagem caça a câmera de segurança da residência filmando os realizadores). Porém, nada se concretiza – Câmara Escura é um filme-fracasso.

Surpreende (ou não) a aceitação do fracasso. O dispositivo, exposto ao fracasso, transmuta-se em fracasso como dispositivo. Nesse sentido, Câmara Escura é como uma ficção calculada, uma encenação de um método destruído pelas circunstâncias – previsíveis – cujos cacos resultam em algo belo e relevante. Assim, o filme desiste de fazer o dispositivo funcionar, contenta-se em mostrar sua erosão. Câmara Escura levanta todas as questões acima mencionadas, mas é possível que a principal delas passe despercebida em mesas acadêmicas e debates dos festivais ainda por vir: o ato de devolver a câmera a uma caixa – a câmara escura está para o cinema como o cartão perfurado está para a informática – cumpre o ideal de não-filmagem: o confronto sem embate na proteção do cercadinho. Com isso, o filme arma uma célula de sobrevivência para o piloto – o choque contra o muro deixa de pôr a vida em risco. Câmera Escura é um filme de teoria, um olhar que discute a perspectiva e a composição lógica, mas evita a aventura – a contramão do que de mais interessante efetivamente há no cinema brasileiro contemporâneo.

Novembro de 2012

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