in loco - cobertura dos festivais
Esse tal de mal-estar
Animador, O Duplo, Na sua Companhia
por Raul Arthuso

Uma das discussões mais interessantes nos debates em Vitória se deu em torno do mal-estar articulado por parte da produção contemporânea. O debate surge de uma pergunta com algum despudor – e certa dose de inocência: por que sempre o mal-estar?

A questão não é nova. O mal-estar é um dos protagonistas do cinema brasileiro moderno – pelo menos em boa parte da produção desde o golpe militar de 1964, momento chave em que os cineastas se encontraram diante de um impasse. Grosso modo, o cinema novo tentou lidar com o mal-estar fazendo a genealogia desse impasse, enquanto o cinema marginal partiu para a descrença, o desbunde, a esculhambação como reação. Contudo, não se pode confundir o mal-estar com a melancolia. Talvez sejam sintomas da mesma doença, porém são diferentes entre si. O mal-estar é um sintoma de relação, de impasse; melancolia é um estado interno – e talvez por isso mais sensível, manifesta-se pelo visível, sendo assim mais encenável. Sem alongar muito uma discussão que merece mais cuidado e reflexão sobre esses conceitos do que permite o pequeno fragmento-diário sobre os filmes exibidos em um festival de cinema (e não podemos perdê-los de vista), retomo uma pequena definição do crítico Francis Vogner dos Reis no texto “Cinema do mal-estar” da revista Filme Cultura número 50: “(...)o mal-estar diz respeito ao presente, à aflição, a uma experiência de desconforto que pode ser sintoma de qualquer doença, mas antes de tudo é um estado de incômodo e debilidade”.

Essa definição serve como uma luva ao que encena um filme como Animador, de Cainan Baladez e Fernanda Chicolet. Há um impasse claro que emana da protagonista e realça os traços opressores do mundo ao seu redor. No primeiro plano, ela tem um pesadelo em que dá à luz um coelho. Em seguida, descobre-se que Ligia trabalha fantasiada de coelho em um parque de diversões. O espectador é colocado numa tênue fronteira entre o surreal e o cotidiano que promete se romper a qualquer momento: as frustrações de Ligia (feia, pobre, sem nenhum talento especial) em relação ao seu impasse com o mundo e seu próprio corpo se avolumam. A fantasia da protagonista torna-se uma forma de aproximação com um mundo perigoso, o parque de diversões onde se desenrola a ação é um extrato dos perigos do contato com o outro. Isso fica claro nas cenas em que Ligia está sem a fantasia. Elas são, em sua maioria, cenas de profundo constrangimento tanto de Ligia, arredia ao contato com o outro, quanto de seus interlocutores, figuras tortas cujos interesses pessoais prevalecem sobre a possibilidade de qualquer afeto. Quando, no almoço, Ligia pede um pedaço de pudim para a amiga, ela cede, reclamando enquanto, em vez de servir diretamente na boca da colega, passa o pudim de sua colher para a colher de Ligia. O mal-estar de Animador é o da fragilidade moral, afetiva e social – uma relação débil com o entorno.

É interessante, por outro lado, que em vez de apostar no denuncismo, no cinismo ou na beatificação da personagem – estratégia do refúgio para a falta de remédios para a doença – Animador expõe a personagem ao ridículo e tenta extorquir do esgotamento do mal-estar uma alternativa. Na cena mais engraçada – e também trágica e constrangedora – Ligia é obrigada a tirar sua fantasia e trabalhar no castelo mal-assombrado do parque. Sem saber o que fazer, ela apenas fica mumificada quando é sua vez de agir. Mesmo assim, as crianças, em êxtase, gritam de pavor. Ligia é como uma prisioneira de um pesadelo íntimo lynchiano, num impasse do qual não há saídas. Animador é como uma exposição in vitro do mal-estar encenado pelo cinema brasileiro, expondo-o de frente, utilizando a ficção como arma para encarar a doença, mas ainda parecendo incapaz de achar as respostas para o impasse e o desconforto. O mal-estar emana da natureza, é parido no começo e acolhido no final. Ou, numa palavra utilizada por Francis em seu texto, o filme encena o inconciliável.

Mas Animador não se furta, por sua vez, do que filma. Fugir do denuncismo ou do cinismo significa pagar o preço por apostar na ficção como agente de reflexão. O parque de diversões, a fantasia como segunda pele, o contato interrompido com o outro pelas máscaras do pathos do trabalho, tudo isso está no reino do drama. Animador, ainda que não apresente possibilidades de quebrar o impasse, sugere a ficção como caminho, uma chave para decifrar os possíveis atalhos ou ainda uma forma de expurgar o mal-estar.

O Duplo, de Juliana Rojas, é uma tentativa de negar a apatia diante do mal-estar, exorcizando-o pela ficção. Para isso, é preciso dar alguns passos atrás, pois o terror se transformou no gênero mais autorreferente e autoconsciente do cinema contemporâneo. A própria Juliana Rojas realizou filmes do gênero com esse caráter evidente. A diferença em relação a O Duplo está em esquecer a consciência do gênero e se entregar a realizar uma obra de terror avant la lettre, com personagens atormentados, seres sobrenaturais (no caso, um doppelgänger), situações de medo, perigo, gritos e sangue bem vermelho jorrando. Há uma recusa de seguir a corrente do filme inteligente, cinéfilo, esperto, cheio de citações e tosco (porque o terrorzão tem de ser tosco por princípios, não é mesmo?!).

Dado o passo atrás em relação do gênero, O Duplo é um estudo do mal-estar. O medo, a apreensão e o desconforto da protagonista em relação ao outro, a estranheza do mundo reduzido ao colégio, o impasse com o duplo, o aluno e os colegas de trabalho são uma tautologia do mal-estar contemporâneo. O passo adiante do filme é fazer do terror não só um modo de aproximação com esse sentimento, como também o apontamento de uma possível superação quando a professora, afundada no vampirismo moral que a cerca, reage na mesma moeda, com violência. Se não há uma resposta exata ao impasse, o gesto de resolvê-lo é forte. Nesse sentido, O Duplo está próximo do melhor de Cronenberg, do terror dos anos 1970, de Kiyoshi Kurosawa – um cinema que propõe superar o impasse armado da própria ficção. Nesse sentido, não é um filme para o intelecto, mas para o estômago.

Exorcizar, superar o mal-estar não significa ignorá-lo, muito menos acabar por completo com ele (improvável que isso aconteça), mas enfrentá-lo, transcendê-lo. Aí reside a importância de Na sua Companhia, de Marcelo Caetano. É um filme inquieto: não é um filme da moda, não se contenta em ser contemporâneo, autobiográfico, autoficção ou não ser nenhuma dessas coisas. É um filme da busca de si, na medida em que se misturam os elementos para negá-los no momento seguinte, descontente com atalhos. Sua austeridade está em não permitir que seus procedimentos se tornem apenas meros procedimentos, os planos sejam apenas imagens seqüenciais (plano é tempo), as personagens sejam apenas objeto. O filme é uma busca por resolver formalmente o impasse das relações afetivas colocadas logo no primeiro plano – uma relação que envolve sentimento, fetiche, sexualidade, mas mediada pela relação de poder de quem filma sobre o corpo-objeto fetichizado.

Trata-se, no entanto, essencialmente de um filme de amor. A descoberta do amor. Um amor doce em que as coisas reais existem para a ficção (os corpos se exibem para a câmera ou a um voyeur? – pouco importa) e a ficção é uma cópia fiel (o travesti Maria Bethânia foi feito só para o filme? – pouco importa também). Caetano encena um romance em formação que vai rompendo a velha trajetória de uma relação fadada ao fracasso – a relação inicial entre quem filma e quem é filmado se dissolve perto do fim, quando os papéis se invertem e logo em seguida se misturam. Eis outra rebeldia: Na sua Companhia vai do inferno ao céu; o protagonista sai do mal-estar inicial para um agradável café-da-manhã romântico em seus momentos finais. O filme rompe, assim, com a lógica do mal-estar inescapável e do inevitável desastre das relações. E o cinema e a ficção são armas para implodir o esgotamento.

Há uma força ainda a se descobrir no espírito de inconformismo de Na sua Companhia, catalisando a inquietação com o que se espera do filme (um filme gay? um híbrido documentário/ficção?) para propor a transcendência desse tal de mal-estar. É quando o cinema deixa de ser uma radiografia e se vira um agente transformador. 

Novembro de 2012

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