in loco - cobertura do Festival do Rio
Volver (idem), de Pedro Almodóvar
(Espanha, 2006)
por Marcus Mello
A
mãe-fantasma
Ao justificar os títulos escolhidos na retrospectiva
que a Cinemateca Francesa dedicou há pouco ao diretor espanhol
(cuja programação também incluiu um ciclo reunindo alguns de seus
filmes preferidos), em depoimento publicado no catálogo da mostra,
Almodóvar afirmou: "Meus filmes são plenos de filmes. Há
sempre uma televisão que os exibe ou um cinema onde os personagens
se encontram. Todos os filmes que aparecem nos meus são meticulosamente
escolhidos, eles fazem parte do roteiro, eles desempenham um papel
ativo. Não são homenagens a um realizador, mas sim roubos: eu
me aproprio de seus filmes em benefício da história que eu conto.
Quando eu vou ao cinema e o filme me interessa, suas imagens se
tornam parte integrante da minha vida, de minha experiência, mesmo
que eu não seja nada mais do que um mero espectador." Em
Volver, seu décimo sexto longa-metragem, Almodóvar segue
"roubando" filmes de outros realizadores - mas desta
vez o grande usurpado parece ser ele próprio.
Como seu título já explicita, o diretor está interessado
em voltar-se para o passado, revisitando alguns de seus principais
temas e obsessões. Mesmo em se tratando de promover uma revisão
quase panorâmica sobre uma filmografia bastante profícua - a cada
dois anos Almodóvar tem nos brindado com um novo filme -, é com
um título em especial que Volver vai dialogar: Que Fiz
Eu Para Merecer Isto? (1984), uma das obras-primas da fase
inicial de sua carreira, coincidentemente lançada no Brasil somente
agora em 2006. Os pontos de contato entre os dois filmes são inúmeros
- a mãe sofredora e arrimo de família, o pai assassinado na cozinha,
a permanente oscilação dos personagens entre a cidade grande (onde
vivem o presente) e o pueblo interiorano (lugar de origem, onde
estão enterrados os fantasmas do passado), a solidariedade entre
as mulheres, o crime impune ou a presença do elemento fantástico
- sem esquecer de mencionar, evidentemente, o reencontro do diretor
com Carmen Maura e Chus Lampreave, duas atrizes que ajudaram a
construir a mitologia almodovariana.
Este voltar-se sobre a própria obra verificado
em Volver é beneficiado pelo refinamento adquirido pela
mise-en-scène de Almodóvar ao longo dos anos. A abertura
do novo filme, um longo e magistral plano-seqüência que mostra
um grupo de mulheres arrumando sepulturas em um cemitério, já
denuncia que estamos prestes a assistir um trabalho assinado por
um autor em pleno domínio de seus recursos expressivos. Um gesto
ancestral de culto aos mortos, ao mesmo tempo solene e banal,
ganha uma representação cinematográfica de grande impacto poético.
Há uma vitalidade vibrante naquelas mulheres debruçadas sobre
seus mortos, em uma cena desde logo antológica, que sintetiza
de maneira muito feliz os paradoxos do cinema de Almodóvar, em
constante movimento entre a tragédia e a mais alta comédia.
A
exemplo de Má Educação (2004), filme anterior do diretor,
injustamente recebido como uma obra menor, Volver aborda
os traumas provocados pelo abuso sexual. A diferença é que aqui
o abuso acontece no âmbito familiar e outra vez estamos diante
de uma história protagonizada exclusivamente por mulheres, chão
que o diretor pisa com absoluta segurança desde seu longa de estréia,
o anárquico Pepi, Luci e Bom (1980). A exuberante Raimunda,
uma dona de casa inspirada nas mammas do cinema italiano,
é a personagem central de Volver. Interpretada por Penélope
Cruz, incorporando com extrema sutileza a gestualidade de atrizes
como Sophia Loren e Anna Magnani (referência escancarada, como
as que Almodóvar menciona acima, na seqüência em que a personagem
de Carmen Maura assiste Belíssima, de Luchino Visconti,
na televisão), Raimunda sustenta o marido desempregado e deve
lidar, a partir de uma tragédia situada logo no início do filme,
com dramas envolvendo sua filha (Yohana Cobo), a irmã (Lola Dueñas),
uma tia (Chus Lampreave), uma amiga de infância (Blanca Portillo)
e sua mãe já morta (Carmen Maura), que volta para “assombrar”
a família.
Dessa situação Almodóvar tira um mundo de enorme
complexidade, cujas misérias e tormentos serão apaziguados pela
solidariedade, pela ética (até mesmo um canalha merece um enterro
decente) e, claro, pelo cinema. O cotidiano infeliz de Raimunda
passa a tornar-se mais leve a partir da chegada de uma equipe
de cinema ao restaurante que ela está administrando. O contato
– e os flertes – com os membros da equipe, a balbúrdia provocada
pela sua presença no restaurante, o trabalho na cozinha ao lado
da filha e das vizinhas, vão ajudando a personagem a curar suas
feridas e a preparar-se para o acerto de contas final com a mãe.
Não por acaso, o filme começa sombrio e vai ficando cada vez mais
colorido, a comprovar a habilidade do diretor no uso das cores
como elemento dramático.
O
encontro decisivo de Raimunda com a mãe, além de esclarecer os
principais mistérios da trama, também vai revelar que o abuso
sexual é um tema apenas lateral em Volver. Se há cinco
séculos, com Hamlet, William Shakespeare já havia demonstrado
que a paternidade é uma fantasmagoria a assombrar os indivíduos
até o fim de seus dias, agora Almodóvar vem fazer o mesmo com
a figura materna. Ancestralidade e descendência são correntes
das quais não conseguimos nos livrar, lembra o diretor. Essa mãe-fantasma
que se esconde sob a cama e nos observa de longe, que nos trouxe
ao mundo e condicionou nosso destino, que nos vela e nos assombra,
é a mãe arquetípica de todos nós. O fato de Almodóvar ter lhe
dado o rosto de Carmen Maura (a extraordinária atriz de Que
Fiz Eu Para Merecer Isto?, A Lei do Desejo e Mulheres
à Beira de um Ataque de Nervos), superando ele próprio um
desentendimento do passado, é mais uma prova de generosidade e
sabedoria deste artista genial.
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