in loco - cobertura dos festivais
A Viagem do Balão Vermelho (Le voyage
du ballon rouge), de Hou Hsiao-hsien (França, 2007) por
Cléber Eduardo A
imagem-conceito e a imagem da experiência
Na primeira
sequência do filme, vemos uma experiência (de um personagem) e um jogo (do filme
conosco). Um menino fala em francês com algo ou alguém fora do quadro, olhando
para cima, e, na ausência de resposta de seu interlocutor, invisível para nós,
sai de cena. A câmera movimenta-se para esse extracampo e, em um contraplongée
incomum, em busca de seu alvo, enquadra um balão vermelho em uma árvore. O balão
sobe, flana pelo céu. Um ou outro corte depois, com a câmera sempre a ter o balão
como centro dos planos, reencontramos o menino do começo, dentro do vagão de um
trem, com o balão do lado de fora, agindo como se tivesse vida própria, como se
estabelecesse um jogo com o menino, misto de aproximação e distanciamento, de
dar-se a experiência e de jogar com ela. Não é outra a operação
de Hou Hsiao-hsien com o espectador se não essa do balão com o menino: a imagem
da experiência e o jogo com essa imagem. Depois de realizar Café Lumière
no Japão, o cineasta expande a internacionalização, com Juliete Binoche no elenco
e os diálogos em francês, o ambiente parisiense. Nesse contexto, Hou Hsiao-hsien,
sem romper com a imagem, quer explicitá-la como tal. A imagem lúdica e inverossímil
do movimento próprio do balão, da coisa como ser, é depois desmontada em sua poesia,
mas somente depois do poético se estabelecer. Primeiro, o sonho. Depois, a revelação
de como se produz o sonho. Ainda adiante, sonho e artifício fundidos, a imaginação,
a técnica e a vida em um só plano, distanciando-se assim do segmento reflexivo
do fim dos anos 60 e início dos 70. Embora exiba a construção do efeito poético,
Le voyage... o cultiva, assumindo-se como um jogo constante. A aparente
desconfiança das aparências em quadro, atitude crítica e estética forte na virada
de 60 para os 70, sobretudo nos Cahiers du Cinema e em Cinethique(1), apenas é
parte integrante do jogo da crença. Se uma imagem engana e se cada enquadramento
tanto omite quanto revela, mesmo quando em plano-seqüência, mesmo quando em travelings
supostamente reveladores do extracampo (a imagem do balão na árvore), o efeito
da imagem supera sua desconstrução. Hou Hsiao-hsien persegue o efeito da imagem.
Não quer desmontá-la a ponto de esvaziar a possibilidade dela carregar sua verdade.
Essa imagem do balão com movimentos próprios, como saberemos
adiante, é de um remake de O Balão Vermelho (1953), do francês Albert
Lamorisse, Oscar de roteiro e Palma de ouro de curta-metragem. Trata-se de um
curta dirigido por uma das personagens, Song (Fang Song), uma jovem chinesa mostrada
em seus primeiros dias como babá do menino do primeiro plano, uma jovem curta-metragista
que filma crianças nas ruas. Os movimentos próprios do balão, Song explica mais
à frente, são produzidos por um truque: um homem com uma roupa verde conduz os
movimentos. Sua imagem é apagada, depois, na finalização do curta. A imagem revela,
a imagem omite. Essa parece ser uma questão para Hou Hsiao-hsien. Em dado momento,
uma professora pergunta aos alunos, diante de um quadro, onde está o pintor. O
ponto de vista, essa outra questão forte nos anos 60/70, colocada de lado por
um cinema com olhos em todos os cantos e com raras resistências estéticas pela
seletividade do olhar (Manoel de Oliveira, Apitchatpong Weerasethakul, Pedro Costa),
é posto em discussão. Na
primeira aparição do quadro, vemos uma parte dele apenas, como se fosse todo.
Quando o plano se abre, vemos um casal ao fundo, perspectiva mais ampla do espaço.
O ponto de vista, o extracampo, as revelações/omissões. Uma questão transformada
em jogo de linguagem constantemente colocado pelo filme nas entre-imagens, por
meio dos reflexos nos vidros a juntar o campo e o extracampo em um mesmo plano,
assim como na seqüência em que se mostra o menino e a babá, ela filmando e ele
jogando fliperama, com a câmera do filme do lado de fora do estabelecimento, com
um vidro entre ela e os personagens; com a câmera da personagem apontando para
a da instância narrativa. Nesse sentido, é um filme-conceito. No entanto, conforme
se colocou lá nas primeiras linhas, naquele primeiro plano, com o menino falando
com o balão (esse fora de quadro), havia a imagem da experiência. E essa imagem
se espalha por todo o filme, com uma dinâmica de olhar observacional, construído
por planos-seqüências sutis em sua mobilidade, quase transparente quando caminha
pelo ambiente, quando se vira para um lado, para outro, escolhendo os acontecimentos
que acompanha com a lente, sem chamar atenção para o fato de estar olhando, a
não ser muito raramente (a maneira como o afinador cego do piano é colocado em
cena em alguns momentos e movimentos). É uma imagem quase
militante na atenção dada para gestos miúdos, sem conotação, sem sentido a ser
empregado em uma visão geral, sem seu emprego como sintoma de algo para além deles.
Essa recusa a uma dramaturgia, ou essa dramaturgia da experiência na extensão
do fragmento pouco relevante, de maneira mais rarefeita que nos filmes de Yazujiro
Ozu, depende de momentos ricos, nos quais a extensão do plano não seja a questão.
Podemos sentir essa riqueza do mínimo, por exemplo, quando o vizinho de apartamento
de Suzanne (Juliette Binoche) invade sua cozinha. É um momento que não deriva
de nada, que produz uma alteração no espaço, que produz um mal estar posterior,
tudo por conta da necessidade de se cozinhar legumes, de servir bem um jantar
aos amigos. É um momento que parece invadir a cena, mas não o filme, porque, quando
os efeitos desse momento retornam, são uma questão de fundo, da personagem (Suzanne),
não do filme – porque a questão do filme é o jogo entre a observação e a construção
do efeito poético. Procura-se trabalhar no limiar entre a
seletividade do olhar e aleatoriedade na escolha dos acontecimentos mínimos a
serem filmados. Uma aleatoriedade menos por descuido ou desleixo, palavras até
hoje bastante distante dos filmes de Hou Hsiao-hsien, e mais por atitude política
e estética: a quebra de hierarquia entre o que merece ser filmado e o que não
merece ter imagem, entre o que está em quadro e fora dele. Portanto, a seletividade
tem de se dar a partir de uma ausência de seletividade, ou de uma mudança de paradigma
nessa operação de selecionar materiais filmáveis. Esse jogo de seletividade com
efeito de aleatoridade também determina a duração dos planos, com o desafio de
transformar a duração não em tempo, mas em olhar, de modo a levar o espectador
a ignorar a ausência do corte e reter os pequenos acontecimentos. Hou Hsiao-hsien
é um cineasta sempre atrás da generosidade do olhar: do olhar dele para o que
escolhe nos mostrar, do tempo para esse olhar, para os personagens moverem-se
no espaço e no tempo, em nome de uma produtividade narrativa. Para
tomar conta de uma criança que aceita o jogo com a imagem e o fabular, uma criança
com poesia, vemos uma babá chinesa, com sua voz silenciosa e seu silêncio tranqüilo,
ocupando o contracampo da mãe da criança, manipuladora de marionetes, mas sem
controle sobre seu cotidiano, ao qual reage de forma sempre ansiosa e acelerada.
Haveria uma proposta para além do jogo? O próprio jogo para carregar a proposta.
Em um tempo histórico de apagamentos e de fragmentações, Hou Hsiao-hsien propõe
a “imagem-memória do instante”, a observação atenta e generosa, a não-produtividade
de roteiro e narrativa, a não-hierarquização solicitada pelo drama, de modo a
empregar, como política estética, uma resistência a essas funcionalidades todas.
Um cinema muito especial, que cada vez deverá ter diluidores
(alguns já a vista) que procuram outras estratégias para seduzir a percepção,
sem deixar de solicitar algo nessa relação entre emissores e receptores. Que algo?
A generosidade de reservar duas horas e pouco para olharmos o que o diretor escolheu
para nos mostrar com sua maneira de sentir seu mundo. (1)
Cinethique não foi uma inspiração para darmos o nome a Cinética. Revista desconfiada
da imagem e só interessada na imagem como alienação, grosso modo, certamente não
publicaria em suas páginas os artigos levados ao ar em Cinética. Por que a aproximação,
se há distância? Porque, à maneira godardiana, quisemos oferecer um outro lado
para a posse sobre certo signos-discursos, mudarmos a relação entre o sentido
de “cinética” e as práticas críticas expostas sob essa noção. Os nomes, para nós,
são escolhas sérias. Outubro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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