ensaios
Andy Warhol: duas teses, dois impasses
por Luiz Soares Júnior
"E se o corpo não fosse a alma, o que seria a alma?"
Walt Whitman
"As pessoas em Warhol são mais
reais que o real porque a câmera encoraja seu exibicionismo.
Eles estão todos "fazendo performances" porque
suas vidas são uma única e longa performance, e
sua festa nunca acaba".
Andrew Sarris, The Sub-New York
Sensibility
Toda
a obra de Andy Warhol é um elogio da superfície,
ou antes: uma ativa exploração de seus veios. A
superexpoxição; o uso desordenadamente esquizo do
zoom; as panorâmicas vivazes de My Hustler;
o stacatto histérico dos strobe cuts
a partir de I, a Man; o split screen em Chelsea Girls
(foto) são uma inervação - percussão,
ausculta, provocação - do corpo plano. A
câmera se transforma numa espécie de bisturi: secciona-se
e sutura-se para revelar, não um núcleo essencial
e irredutível às superfícies - e seu arsenal
de poses e contraposes, clichês magnificados pelo punctum
em nitrato - mas as suas virtualidades dramáticas,
o pathos, as intensidades que permanecem agindo sobre um corpo
em aparência imóvel e exposto, ali.
O que se coloca à nossa mão é um espaço
plano, bidimensional (luz chapada, grão adstringente do
16mm, foco epidérmico); mas vivo, possível,
agitado por uma vida e uma morte secretas. Uma espécie
de refoulé do plano. O que Warhol nos mostra em
Sleep, por exemplo, é que o corpo do poeta Jean
Giono, apesar de adormecido, está submetido a um circuito
próprio - embora cego - de manobras, uma arena de forças
subterrâneas: condensações e rarefações,
fluxos e refluxos, lá e acolá. Em Blow
Job, o boquete "fora de quadro" nos deixa a sós
com as cicatrizes que o desejo delineia sobre a superfície
do close, as modulações que ele imprime à
planície do corpo. Empire (o Empire State Building)
é um objeto inanimado filmado como se fosse um corpo, um
container de devires: a superexposição
instila devires na natureza morta, flutuações de
luz que revelam as variações atmosféricas
incidentes sobre o monstro.
Benjamin H.D. Buchloh escreve sobre o Warhol pintor, um intérprete
de Rauschenberg: "As adaptações que Warhol
imprimiu aos métodos de mecânica impressão
de imagem (dye ou silkscreen) submetem estas técnicas a
várias transformações críticas. (...)
Antes de tudo, Warhol priva as pinturas da abundância associativa
e riqueza referencial que a técnica de collage
típica de Rauschenberg oferecia ao público. Em contraste
a isto, o design da imagem em Warhol (em sua unidade estrutural
ou na múltipla repetição desta unidade) anula
todos os florilégios poéticos e coíbe a livre
associação do espectador dos elementos pictóricos,
confrontando-o com a experiência de uma essencial
restrição. Em um sentido muito literal,
as imagens singulares de Warhol tornam-se herméticas: separadas
de todas as outras imagens ou mortificadas por sua própria
repetição, estas não podem mais gerar "significado"
e "narração"à maneira dos conjuntos
mais amplos de imagens sintaticamente articuladas de Rauschenberg."
O que Warhol interdita na fruição
da obra é a ilusão de uma profundidade simbólica,
de qualquer significado ou volição que não
esteja inscrito no presente dos corpos. (Barthes: "O
que a pop art deseja é dessimbolizar o objeto, desvencilhar
a imagem do significado profundo, associação metafórica
ou conexão metonímica em nome do simulacro da superfície"
). A câmera fixa em seus primeiros filmes é apenas
um fundo neutro sobre o qual se destacam - mobilizados pela ludicidade
infantil com que Warhol lida com sua câmera-falo - uma verticalidade
(temporal) caleidoscópica de sensações; de
histórias por contar e identificações a suscitar
- mas não há tempo nem rolo de filme suficiente,
então ficamos com o bric-à-brac da experiência.
Tudo o que Warhol retém da vida desta gente poderia estar
na lixeira do dia seguinte, tudo é casual, insignificante
e anódino; mas o tempo dedicado e a atenção
provocativa com que estes performers de beira
de calçada são inspecionados pela câmera transforma
aquele presente em uma trama singularmente encantatória
de reminiscência e transe (Raymond Durgnat: "Atmosférico
é o que eu chamaria de síntese entre uma rememoração
e uma percepção" ).
Mas
a obra de Warhol também segrega uma enigmática cumplicidade
com o vacuum que merece ser exposta aqui. A serialidade
do Warhol pintor no cinema se traduz por esta insistência
quase mediúnica em observar ações e inações
solitárias; a repetição de um espaço-tempo
- a ênfase no Mesmo - acaba por destilar uma Diferença,
uma insuspeitada Profundidade sob a transparência destes
inventários ritualísticos da vida cotidiana. O presente
mais elementar - comer uma banana, em Mario Banana I
e II (foto); sofrer um boquete, em Blow Job;
dançar rock em contraponto a uma sessão sado-masoquista,
em Vinyl -, desvela enfim, pela concentração
temporal com que é observado, uma intransitividade.
"Assim como Francis Ponge, poeta francês contemporâneo,
acreditava que uma linguagem durável poderia ser encontrada
pela descrição dos elementos materiais que conhecia
desde a infância - e acreditando ainda que estes elementos
constituíam a única metáfora para o Infinito
-, Warhol trabalhou a destilação da realidade
através da excessiva exposição no tempo de
um número de atividades cotidianas: comer, beijar. Falando
destes aspectos da vida humana, possivelmente ele lhes imprimiu
um caráter mágico". (Serge Gavronsky).
Mas reflitamos bem: este Infinito no cinema
de Warhol é um mauvais infini, uma nulificação
niilista da experiência. Estranho paradoxo: por um lado,
a exposição encarniçada dos homens e mulheres
- ao olho gélido, anti-simbólico da câmera
e ao tempo - acaba por transformá-los em personagens
(de si mesmos?), em nos sugerir uma exuberante história
de vida entrevista sob o presente captado pela câmera. Afinal,
suas idiossincrasias são sublinhadas pela diversidade de
técnicas utilizadas, e geralmente os personagens nos são
apresentados num espaço e atitude absolutamente casuais;
de alguma forma, tudo nos convida à intimidade com aquela
gente, à cantada-colóquio, ao gim do crepúsculo.
Ao mesmo tempo, esta síndrome de repetição
a que estão condenados os personagens, punhetando de forma
autista os mesmos dias idos e vividos - círculo enfeitiçado
do Mesmo intensificado pela duração medusina com
que Warhol os fixa, impreterivelmente até que
acabem os rolos de filme - acaba por gerar uma mortificação
da experiência, um esvaziamento do poder demiúrgico
outorgado ao ato de contar uma história, de narrar.
É
uma delimitação do/no tempo que define a vitalidade
de uma experiência, seu sentido; começo, meio e fim.
Sem finitude, nada teria sentido, porque nada acabaria; portanto,
não poderia ser narrado. E a experiência é
necessariamente vivência traduzida em Logos, ser Re-apresentado,
dirigido ao Outro. Ou seja: é-nos dada a possibilidade
de identificar - pelo jogo entre identidade (câmera fixa,
duração contínua) e Diferença (zoom
in, zoom out, strob cuts) - os vestígios luminosos
de uma vida recheada de momentos privilegiados, de vidências
e coups de théatre; mas a rigor Warhol filma as
experiências únicas de seus sujeitos únicos
como se fossem experimentos in vitro: a vivacidade e
a unicidade da experiência são negativadas pela
atenção absolutamente neutra (mecânica)
com que aquela gente é mostrada. Assim, sugiro a inversão
do que disse mais acima, de que o Empire State é filmado
como se fosse um corpo (um falo, no caso, símbolo da potência
financeira de Nova York); o contrário pode-se dizer de
todos os seus performers: estes são filmados como
se fossem objetos; ou, no máximo, meios de cultura para
experimentos estruturais com o tempo, o corte (ou a ausência
de), a textura da foto, a luz.
A obra de Warhol radicaliza um impasse niilista
inerente a toda vanguarda, a todo movimento crítico das
formas canônicas de uma determinada tradição.
Aqui, uma irregularidade técnica flutuante, a recusa em
imprimir um eidos - forma, figura - aos filmes, deixando-os
ao deus-dará do continuum ontológico e
do spleen udigrúdi, representam esta reação
aos produtos bem acabados do classicismo hollywoodiano; uma reação
que acaba por implodir, em sua informe e caótica construção,
a possibilidade da própria obra.
Camus tem um belo insight. Dizia que os
artistas são infiéis por definição;
segundo ele, a melhor maneira de compreender a realidade
seria filmando a vida inteira de um homem. Isto seria impossível,
redargüe, pois mesmo se houvesse uma espécie de câmera
ubíqua focalizando a vida do sujeito, haveria ainda incontáveis
inclusões a serem contabilizadas, inclusões impossíveis
de aferir pelo sujeito finito, filigranas de filigranas. Só
Deus seria capaz - se Deus existisse - de apresentar todas as
fases e condições da realidade, de exprimir um ponto
de vista que reunisse numa única perspectiva o conjunto
das outras. Então, toda obra de arte - toda obra - deve
ser necessariamente determinada por uma forma, por limites.
Aqui se explica a indignação de Brakhage diante
dos primeiros trabalhos de Warhol; simplesmente, ele não
via trabalho ali, a presença de mediações,
portanto a evidência de uma obra, de um produto acabado
da subjetividade.
Mas
eis o momento de retomar algumas reflexões do começo
deste texto. A obra cinematográfica de Warhol consiste
num aurático, hipnótico, ascético ritual
de rarefação do simbólico; semelhante operação
implica no redimensionamento da questão do ponto de vista
no cinema. O que Warhol busca é atingir - através
da identificação do nosso olhar com o ponto de vista
elementarmente mecânico da câmera - uma certa transparência
da visão, um ponto zero onde corpos e paisagens sejam vislumbrados
sob um mesmo horizonte eidético: espectrais à força
de objetivas, numinosas à força de reificadas, feeéricas
à força de irrisórias. É um cinema
que, justamente por tentar prescindir do simbólico - por
nos constranger à nudez da presença nua -, força
o espectador a uma intensidade perceptiva maniacamente ativa;
justamente porque estes gestos são intermináveis
e estes ditos anódinos, temos de mobilizar em nós
reservas incomensuráveis de atenção, afeto
e maravilha.
Há um psicanalista infantil chamado Daniel Stern que nos
fala sobre um fascínio tipicamente infantil: " A Face
é o objeto mais atrativo e fascinante que existe. O tempo
que passamos quando crianças olhando faces é proporcionalmente
superior a qualquer outra medida de tempo de nossas vidas. Pelo
fato das crianças serem involuntariamente atraídas
pelos elementos visuais que compõem a face - tamanho, proporção,
textura -, esta atenção, que pode levar longos períodos
de tempo, é uma espécie de "atenção
máxima", absolutamente envolvente.(...) Um dos efeitos
potenciais deste tempo concentrado do olhar é a separação
entre o foco da visão e da atenção. Ou seja:
depois de olharmos para certo objeto por algum tempo, embora os
olhos permaneçam centrados neste, nossa atenção
tende a se refratar. À medida em que nossa atenção
e foco divergem, visuais distorções são produzidas.
(...) Somos todos familiarizados com este fenômeno: olhe
uma palavra numa página por um certo tempo, e esta
começará a distorcer-se, a brilhar, o espaço
em torno colapsa e retrai-se, cores parecem aparecer onde nada
havia antes" .
O cinema de Warhol é uma espécie de inventário reificado da experiência fascinatória que encanta (enfeitiça) crianças, que as leva a perderem-se em seus objetos, a dirimir as fronteiras (simbólicas) entre significante e significado, sujeito e objeto. Por meios bem distintos dos tableaux hipnagógicos de Stan Brakhage, ambos acabaram por atingir um mesmo podium reconciliado de visão.
Setembro de 2011
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