Watchmen - O Filme (Watchmen),
de Zack Snyder (EUA, 2009)
por Eduardo Valente

Tempo, tempo, tempo

Na série de quadrinhos original em que se baseia o filme de Zack Snyder, a iconografia de um relógio era o ponto final de todos os seus episódios, e um de seus personagens principais é o filho de um relojoeiro que, por conta de um relógio, termina se transformando numa espécie de “super-homem”. Não é preciso ir muito mais longe para entender que a idéia mesmo de passagem de tempo e a própria cronologia histórica eram dados importantíssimos nesta obra. Por isso mesmo, não deixa de beirar a ironia o fato de que o filme baseado nela termine sendo tão traído, justamente, por esta força implacável que é a passagem do tempo. Sim, porque os poucos mais de vinte anos passados entre a publicação da série original e a chegada ao mundo deste Watchmen – O Filme deixaram pelo menos duas marcas indeléveis na possibilidade de nos relacionarmos com ele que atravancam bastante as possibilidades verdadeiras do seu sucesso.

O primeiro e mais óbvio destes efeitos é de relação direta da obra com o seu entorno histórico: passada em 1985, a série de quadrinhos era contemporânea ao tempo do seu relato. Mais do que um detalhe, a sensação de urgência das questões ali abordadas e, principalmente, do seu sentimento de “fim de mundo”, eram centrais para o impulso criativo do trabalho e a sua recepção pelo leitor. Partilhar de um mesmo presente entre leitores e personagens é essencial em Watchmen. Quando Zack Snyder sai para filmar 1985 em 2009, ele localiza aquele espaço na segurança de um passado que se permite anedótico para além da sua utilização de realidades paralelas (algo evidenciado, por exemplo, pela inserção de algumas canções na trilha sonora, em especial “Everybody wants to rule the world” e “99 Luftballons”). Mais do que isso, porém, no trabalho de reconstrução com algo de vintage e algo de um futurismo passado, o filme ganha um aspecto gráfico de uma plasticidade um tanto fria e hiper-cuidada, que em nada ajuda o sentimento de caos que era o que sobressaía no quadrinho.

Se este problema talvez pudesse ser contornado, a outra questão é mais grave e profunda, pois diz respeito ao significado principal dos dois trabalhos nos seus meios e nos seus tempos. Afinal é fato que grande parte do impacto da série Watchmen em 1986 dizia respeito ao fato de que sua chegada representou uma revolução no meio dos quadrinhos de super-heróis (algo que ela não realizou sozinha, diga-se, sendo tanto precedida por alguns trabalhos do próprio Alan Moore como V de Vingança ou Miracleman, como contemporânea de criações como os Batman e Demolidor de Frank Miller, entre outros), tanto pela sua forma de trabalhar com as personas dos mesmos como também pela sua dose de realismo tanto na incorporação (e transcriação) de elementos históricos como na maneira como insere os heróis no mundo em torno deles. Vinte anos depois, nem os quadrinhos de super-heróis são os mesmos, que dirá o cinema (que, como meio, já incorporara antes alguns destes problemas) voltado para este universo. Para percebermos o quanto aquilo que a série Watchmen ajudou a começar em 1986 já encontra-se hoje em patamar completamente diferente, basta pensarmos em exemplos óbvios como os filmes do Homem-Aranha ou os mais recentes Batman ou tão heterogêneos quanto um Hancock ou Os Incríveis – filmes em registros que passam pela franca comicidade e/ou o cinema infantil, mas ainda assim incorporam diretamente uma série dos temas de Watchmen, hoje naturalizados como parte do que é a mitologia mesmo do herói (os problemas de consciência, do lugar do herói, da passagem do tempo para eles, etc).

Ambas estas questões dão ao filme um anacronismo que talvez pudesse ser contornado por Zack Snyder se apenas fosse enfrentado com o efeito que possui: uma incontornável mudança no significado que o seu filme poderia almejar em relação àquilo que buscava a série em 1986. No entanto, a impressão que fica é que Snyder parece preocupar-se acima de tudo com questões de fato menos importantes para o filme, como “fidelidade” ou “transposição de linguagens” (do quadrinho pro cinema), e ao fazer isso pode até responder a determinados anseios fáceis e imediatistas de percepção, mas certamente não consegue dar a seu Watchmen nenhuma sombra de real e relevante presença como obra com um ponto de vista próprio (mesmo que seja um tão plural e contraditório como costuma ser o de Alan Moore), que tenha de fato algo a dizer sobre o cinema e/ou o mundo de hoje, como era o caso da série com o seu meio (os quadrinhos) e o mundo de então.

Embora a ignorância quanto a estes dilemas me pareça claramente o grande muro que surge frente a Watchmen – O Filme limitando seu alcance, há ainda observações interessantes, mesmo que secundárias, que ele permite fazer sobre os temas acima citados. Não é a menos fascinante destas a constatação de como é problemática a passagem de uma plataforma onde os personagens são desenhados e suas falas e pensamentos são lidos para uma onde eles ganham a presença física tridimensional de corpos humanos e seus diálogos e pensamentos são falados. Não por acaso, parece nítido que, muito mais do que uma questão de qualidade de atores e/ou adequação de casting, os melhores resultados obtidos por Dr. Manhattan e Rorschach como personagens no filme deve-se no primeiro a seu caráter etéreo e sobrenatural (solucionado em grande parte com a ajuda de efeitos digitais e alteração da voz), e no segundo à ausência de um rosto na maior parte do filme (embora, sim, Jackie Earle Haley dá ao Rorschach sem máscara uma presença de cena impressionante). De resto, quando filmados e interpretados com o alto grau de auto-importância que Snyder gosta de emprestar a suas cenas (“This is Sparta!”, lembram?), diálogos como “what happened to the American dream?” não são particularmente ajudados a soarem bem.

Quanto à (falsa) questão da fidelidade ao original, há uma clara dualidade resultante da forma como o filme trabalha. Se há de fato um alto grau de fidelidade no que se refere à recriação de inúmeras das cenas, diálogos e encadeamento dramático da série, não deixa de ser curioso pensar que é esta própria fidelidade que engessa a possibilidade do filme ser fiel ao que sempre há de mais importante numa obra ficcional, que é seu sentimento do mundo. Se isso acontece em parte pelo já citado deslocamento temporal, também deve muito ao trabalho estético de Snyder, que empresta bastante (não sem mudanças enormes) do que ele explorou antes em 300. Fato é que a leitura da série de Alan Moore impacta acima de tudo por um sentimento de profundo desespero que passa totalmente ao largo do filme de Snyder porque, como encenador, este não consegue quase nunca resistir ao canto da sereia fácil de uma iconografia e montagem cool (algo deixado claro na seqüência dos créditos iniciais – aliás sintomaticamente das poucas coisas criadas para o filme sem estar na série). Nesta obsessão que perpassa todo o filme (da arte à iluminação, passando pela montagem e trilha), Snyder faz um filme que até pode encantar olhos ou sentidos em seqüências isolados, mas que justamente por fazê-lo abre mão de qualquer noção mais forte de clima - que é, afinal, a base do fascínio de Watchmen. Percebemos, por exemplo, como o uso constante da aceleração e retardamento da imagem nas cenas de ação acaba igualando todas elas impedindo que aquelas nas quais elas realmente deveriam impactar (Rorschach com o assassino da menina, a tentativa de estupro pelo Comediante) se diferenciem daquelas onde o efeito é secundário (a luta no beco ou na prisão; as lutas finais na Antártica).

Mas não é só o clima que termina sacrificado: Watchmen – O Filme tem um problema grave de não conseguir nunca achar seu ritmo como narrativa – e, de novo, isso curiosamente se deve a um desejo frustrado de ser “fiel ao original”. É fato que a forma de trabalhar seu efeito por acumulação, tão típica da obra de Moore, tem enormes dificuldades de funcionar quando aplicada a uma narrativa linear como é o cinema de longa-metragem. No entanto, se o filme de Snyder se arrasta em muitos momentos, é curioso perceber que isso acontece menos por ele ser longo demais, mas justamente pela escolha de cortar tantos dos personagens da série (que não se centra só nos heróis, como o filme, mas também em vários dos “humanos normais” que os circundam). Com isso, Snyder tenta achar uma idéia de “funcionalidade narrativa” numa história em que a trama principal, enquanto entrecho, é absolutamente o menos importante. Quando esta vem para primeiro plano, revela sua real fragilidade e desinteresse e, entre o desejo de ser cool e esta preocupação excessiva com a narrativa, Snyder deixa de lado o que de único havia no original, resultando num filme que consegue nos seus melhores momentos apenas soar como ilustração diminuta de algo maior que ele. Com isso, nos relembra pela enésima vez que, em adaptação entre linguagens artísticas, fidelidade é mesmo atributo canino.

Março de 2009

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