Onde
Vivem os Monstros (Where the Wild Things Are), de Spike Jonze (EUA, 2009) por
Eduardo Valente A
infância é cheia de som e fúria
Existem várias
maneiras de conceituar o que é um filme infantil: um filme feito para as crianças
(exclusivamente) verem; um filme feito por crianças; um filme feito a partir das
crianças. Entre todas estas, talvez a relação que nos parece a mais frutífera
a ser pensada entre o novo filme de Spike Jonze e o universo infantil está menos
no quanto ele se adequa ou não a este conceito como produto a ser consumido, mas
principalmente na forma como coloca na tela alguns sentimentos de mundo que parecem
bastante fiéis à experiência da vida pela perspectiva de uma criança. É
neste sentido, talvez, que podemos dizer que Onde Vivem os Monstros seja
sim um filme plenamente infantil. A principal maneira como
Onde Vivem os Monstros parece inusualmente (para os cânones do cinema infantil
mais corrente) irmanado a um olhar de criança é a forma como ele trafega de forma
incrivelmente rápida da melancolia profunda à euforia sem limites. Na entrega
completa aos dois sentimentos extremos há algo de libertador e não controlado,
como devem ser as crianças. Nada dos meios termos seguros construídos ao longo
de anos e anos de “educação” às dores e alegrias do mundo, que parece apontar
como maneira mais “correta” de enfrentar a realidade uma bem estruturada dose
de bom senso que saiba que a cada pico pode equivaler um vale logo depois. Em
Onde Vivem os Monstros, ambos (picos e vales) são experimentados como se
fossem únicos – mas, paradoxalmente, por isso mesmo podem e vão se alternar com
velocidade imensa, sem rede de segurança. Um
segundo sentimento de mundo profundamente infantil reproduzido aqui de forma bastante
rara no cinema é a sensação de perigo iminente posta em cena não tanto como um
dado especialmente notável, mas onipresente mesmo. Na epopéia de Max pelo mundo
dos monstros, a todo momento a vida dele fica por um fio, já nas ondas do mar
bravio que o levam até lá, mas daí em diante a cada brincadeira que, se sair do
controle mais um centímentro pra cá na beira de um mar, ou um quilo pra lá no
“montinho” de gente em que eles dormem, resultará instantaneamente na morte de
Max. A infância é mesmo um campo minado, e a criança é especialmente frágil porque
inconsciente tanto de sua mortalidade como principalmente do grau de perigo das
situações em que se envolve. É dessa maneira selvagem que Max (e nós com ele)
experimenta o mundo em Onde Vivem os Monstros (e isso tudo já começa antes
mesmo da sua “viagem”, como na cena em que ele é quase sufocado no iglu). Como
todo conto infantil, é claro que Onde Vivem os Monstros também é uma narrativa
exemplar no sentido estrito do termo. O trajeto de Max entre a fantasia e a realidade
segue um modelo quase imemorial, profundamente devedor, entre outros, do mundo
de Oz. Na ida à fantasia o que se constrói, porém, é muito menos da ordem do aprendizado
(especialmente na forma moralista do pior do cinema infantil) do que da ordem
da passagem da infância para um momento posterior. Assim, se num O Sexto Sentido
tudo era uma questão de educação do olhar (com toda perda que é inerente a um
processo de educação), em Onde Vivem os Monstros trata-se de perceber o
mundo para além do seu próprio quarto. No início, Max acredita poder moldar o
mundo (donde o iglu), como bem indica um troféu no seu quarto (“dono do seu mundo”).
Ao entrar em choque com a alteridade brutal que representam para ele os sentimentos
de sua irmã e mãe, em momentos distintos, onde toda a crise se dá por percepções
distintas do que acontece (brincadeiras ou não), Max escapa para a fantasia, num
mundo em que verdadeiros bichos de pelúcia aumentados (e aqui vale a menção rápida
ao genial desenho das criaturas, entre profundamente físicas e totalmente fantásticas)
podem ser convencidos a seguir suas ordens. Ao longo deste trajeto, a fotografia
de Lance Acord reproduz tanto o imediatismo das emoções conflitantes, na sua câmera
na mão radical, como também o sentimento de poder isolar o mundo externo aos seus
desejos, como Max faz tanto no seu iglu como quando conversa com KW no fundo da
“pilha de monstros”. Será
no projeto factual de construir uma fortaleza ideal, porém, que o projeto de um
mundo à parte ruirá pela constatação de que existirá sempre a alteridade, que
impõe os limites de uma existência partilhada com outros desejos e necessidades
que não apenas os seus. Nesse sentido, é bem claro no filme que Carol funciona
como um espelho de Max no mundo dos monstros: possuidor do seu próprio mundo ideal
devidamente talhado em madeira, mas constantemente em choque com a realidade de
que os outros (principalmente KW) não se limitarão aos papéis que escolhemos para
eles. O relacionamento de Max e Carol é delicado justamente por este espelhamento
que os torna próximos, autênticas almas gêmeas desde o primeiro encontro,
mas por isso mesmo fadados ao choque quando perceberem o “lado escuro” um do outro,
que é sempre pessoal e intransferível. Para
este lado escuro não há negociação: só a aceitação sem condições prévias
ou a despedida – e é desta que se trata em Onde Vivem os Monstros, num
final sem qualquer sinal de conciliação possível com a fantasia (é especialmente
notável como nas despedidas não há um congraçamento, por exemplo, de Max com os
monstros com os quais teve relação mais distante). Assim, se a aventura no mundo
fantástico permite a Max voltar para casa e enfrentar o mundo dos outros (que
será também o dele), para Carol só resta o uivo frente ao mar que marca a dor
profunda de uma perda, que é menos a da despedida do que a da crença num mundo
ideal. O uivo de Carol é o próprio sentimento infantil materializado – ou, como
diriam os americanos, as “growing pains”. Não é a menor das qualidades de Onde
Vivem os Monstros conseguir que estas, e outras, dores da infância (mas não
só) estejam tão presentes e latentes na tela quanto a maravilha de um mundo de
sonhos, onde se pode ser rei. Fevereiro de 2010 editoria@revistacinetica.com.br
|