pariscópio
Frederick Wiseman: Devir Wiseman
por Cezar Migliorin
- Boa Tarde, eu vim pegar a minha carta de residente, ela já deve
estar pronta.
- Seu nome.
- Mafulah. Samira Mafulah.
A atendente vai até uma grande gaveta com centena de documentos
prontos para serem entregues e volta com o documento na mão até
a jovem muçulmana que espera.
- Aqui está. Verifique todas as informações, se estiverem corretas
assine aqui.
A jovem olha o documento com atenção enquanto a atendente negra
espera ao seu lado.
- Há um pequeno erro, diz a jovem.
- Um pequeno erro? Como assim?
- Está faltando o H no final do meu sobrenome.
- Não acredito. Só um minuto.
A atendente sai da sala e volta com uma pasta cheia de papéis.
- Aqui neste documento que a prefeitura fez e que você checou antes
de fazer o exame médico o seu nome está sem o “H”. A culpa desse
erro não é nossa, é sua.
A jovem está atônita, não sabe muito como reagir. Olha o papel que
ela deveria ter checado e hesita em falar.
- Mas...
O seu francês que não era dos melhores parece lhe faltar. Depois
de um minuto ela diz à atendente:
- Por mim tudo bem, é apenas uma letra.
A atendente vira as costas e começa aos gritos a contar a história
para uma colega.
- Esta moça esta pensando que o nome dela pode ficar errado no documento.
Não acredito. Não acredito.
A mulher está indignada. Um senhor que está ao lado ameaça se levantar
para ajudar.
A sala de espera cheia parece tremer. Todos se imaginam no momento
de estar ali, na frente daquela mulher.
- Volte daqui a dois meses.
* * *
No
saguão de entrada da escola uma criança chora compulsivamente. Ela
deve ter entre 7 e 8 anos. A mãe tenta consolar o filho. O sinal
da escola toca e todas as crianças que se encontravam em volta somem.
Uma mulher de traços orientais se aproxima da mãe.
- A senhora não pode ficar aqui.
- Mas é o primeiro dia, ele está chorando muito.
- A senhora não pode ficar aqui.
- Filho, entra que eu tenho que ir embora.
A criança chora ainda mais.
- Eu preciso lhe colocar para fora, diz a funcionária da escola.
A criança se agarra à mãe com muita força. A funcionária agarra
o menino e o puxa com mais força sem dizer nada. Outros funcionários
da escola passam em volta sem nem olhar.
- A senhora, por favor saia, diz a mulher antes de dar um último
puxão e arrastar o garoto aos berros para o interior da escola.
* * *
No metrô dois “controladores” abordam um passageiro.
- O ticket por favor.
Sem levantar os olhos, o passageiro pega a carteira e entrega
um cartão de crédito ao controlador.
O controlador passa o cartão em uma máquina. 45 Euros.
Devolve o cartão.
- O ticket por favor. Diz o passageiro sem levantar os
olhos.
- Desculpe senhor, responde o controlador lhe entregando o ticket.
* * *
-
Minha mulher está doente, por isso não pode vir pessoalmente.
- Mas então eu preciso de um atestado médico dizendo que ela não
pode trabalhar.
- Mas é que nós nos mudamos
- Sim, mas....
- O seguro de saúde não tem o novo endereço.
- Mas senhor, basta informar o centro médico.
- O senhor mora no Boulevard...
- Não senhora, esse é endereço do meu irmão
- E o senhor não mora mais com seu irmão?
- Não senhora, ele mora comigo.
- O senhor pode me dar seu endereço
- Eu não sei ainda de cor e esqueci de trazer anotado.
- Eu preciso de seu novo endereço para poder mandar um pedido
para fazer o exame para a sua esposa ter direito à ajuda financeira
que ela está demandando.
- Entendo.
- O endereço é 34 rue st. Cristophe.
- Qual o bairro?
- É perto daqui.
- No bairro 18?
-É aqui perto.
- Vou deixar sem o bairro senhor.
- O senhor receberá um aviso pelo correio marcando uma hora para
o exame.
- Pelo correio? A senhora não pode marcar agora?
- Só se a sua esposa estivesse aqui senhor.
- Entendo. Quanto tempo?
- Uma semana.
- E se ela ficar boa?
- Ai ela volta para o trabalho e não tem direito à assistência.
- Entendo.
- Obrigado e bom dia
- De nada senhor.
* * *
-
A mochila por favor, diz o segurança na porta do supermercado
a um jovem que está saindo.
- O que há com a mochila.
- Abra a mochila, por favor.
- Não, não vou abrir.
- Mas é uma regra. Está escrito ao lado do caixa. Favor abrir
suas bolsas.
- Eu não abro.
Um senhor que passa ao lado observa
Uma jovem pára para ver o desdobramento.
- Por favor é o meu trabalho.
- Não abro, chame a policia.
O segurança chama um colega pelo rádio.
O jovem e o segurança ficam parados esperando. O jovem coloca
um headphone enquanto espera.
- O que houve?
- O rapaz não quer mostrar a mochila.
- São as regras, é o nosso trabalho.
- Já disse, chame a policia.
Muitas pessoas saem do supermercado.
O segundo segurança sai de perto falando no rádio.
- É só abrir um pouco, pra gente fazer o nosso trabalho.
O jovem não tira o headphone e não responde.
Um homem pequeno e bem mais velho, sem terno e com um crachá do
supermercado se aproxima do jovem enquanto os seguranças estão
mais longe.
- Bom dia.
- Bom dia.
- O pessoal está só fazendo o trabalho deles. A gente sabe que
você não tem nada, então porque não mostrar.
- Só para a policia.
- Porque você não faz a coisa certa?
* * *
Acompanhar um cineasta é ser contaminado pela sua forma de ver
o mundo, pelo recorte que faz das coisas e das vidas, dos espaços
e dos tempos. Esse breve ensaio é reflexo do mês que passamos
acompanhando os filmes do cineasta americano Frederick Wiseman,
em retrospectiva na Cinemateca Francesa e no Beaubourg.
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