reestréia Uma
Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence), de John Cassavetes
(EUA, 1973) por Cléber Eduardo
Atores maiores que seus personagens O
que nos resta constatar, em 2006, sobre Uma Mulher Sob Influência? Se chegamos
às suas imagens já conotados, apenas por sabermos quem é o diretor e em qual ano
foi realizado (1972/1973), estamos com várias suposições em mente. Naquele momento,
o cinema moderno e a noção de autor já viravam fetiche, se desgastavam e contaminavam
as convenções – o que, para um cineasta surgido paralelamente a nouvelle vague,
não deixava de ser uma questão. John Cassavetes faz aqui um filme, nos híbridos
anos 70, com uma levada experimental, mais radical que as convenções, tanto dramáticas
quanto narrativas, então em modernização. Cassavetes, cuja
definição de almanaque, recebida em primeira mão por muitos cinéfilos, é a de
um “autor do improviso”. Precisamos de um único plano, com atores interagindo
um com outro, para confirmarmos, na imagem, o efeito de improviso – expressão
que talvez seja mais apropriada empregar porque, para saber se cada momento ali
é ou não improvisado, teríamos de saber o processo de cada plano. E, como escreveu
Thierre Jousse, em sua análise do universo fílmico e dos procedimentos do cineasta,
não importa se os atores improvisaram, ou se ensaiaram muito esse improviso, e
sim a conseqüência na tela. Quando vemos em um primeiro
momento Peter Falk conversando na caminhonete com um colega, em diálogo no qual
seremos informados sobre a instabilidade psíquica e emocional de sua esposa Mabel
(Gena Rowlands), já se percebe uma liberdade quase desgovernada no andamento da
cena. Há um aparente descontrole na relação direção/atores – efeito de descontrole,
que fique claro, porque Cassavetes, pelo que se sabe, detinha algum controle.
E isso leva essa e outras situações a tomar uma certa falta de direção e funcionalidade
dramática – porque essa é a intenção. Onde se percebe esse processo? Na extensão
quase maneirista de algumas cenas (ou atos, porque a estrutura é teatral, origem
do argumento), menos por conta do tempo dos planos e mais por responsabilidade
dos atores, que partem com uma meta no início da seqüência, mas, conforme ela
avança, vão se dissolvendo até se tornarem imagens constrangedoras, sem jamais
estarem constrangidos. Não se pode esquecer, de qualquer forma, que, antes mesmo
do filme visto, já era esperado esse tom intenso, atuações à flor dos nervos,
personagens em colapso, a sensação de um mundo prestes a ruir. Esse
constrangimento é menos gerado pelos personagens e mais pela própria atitude dos
atores, que, se falam e agem em nome de terceiros (de suas incoporações), conduzem
as falas e ações sem deixar de escancarar a própria atuação, até se sobreporem
a seus personagens e mostrarem os esqueletos de suas construções. É como se uma
câmera tivesse entrado em um ensaio com o elenco, com os atores sem textos definidos,
sem marcação estipulada, sem o tempo exato de cada cena e dos limites de sua expressividade
facial, ainda à procura de seus personagens – e não seria um despropósito pensarmos
em Jean Rouch. Vemos ali o registro da criação (do processo de criar, não do trabalho
criado). Há uma sensação de “pode tudo”, de filme-esboço,
de filme-laboratório, que busca sua autenticidade no que há de autêntico na própria
filmagem, na dissolução do efeito ilusionista da interpretação, em uma suposta
verdade encontrada na cena e não necessariamente antes dela (uma busca compartilhada,
recentemente, por O Quadrado de Joana, de Tiago Mata Machado). Não deixa
de ser paradoxal que, embora esse efeito de movimento desgovernado se dê com os
atores, a organização das seqüências seja “planejada”, com a câmera mudando de
ângulo e distância em relação aos intérpretes, revelando, nessa troca de planos
dentro da unidade de espaço, uma evidência de programação. A
operação laboratorial com a matéria-prima humana (os atores mais que os personagens),
pelo que se percebe no quadro, é menos pautada por esquemas e metas, no sentido
de se cumprir um objetivo do autor (como se dá nos laboratórios de Lars Von Trier),
e mais provocada pela noção de obra coletiva, feita com os intérpretes e não apenas
por intermédio deles. Esse compartilhamento da autoria com quem está diante da
câmera acaba amplificando a subjetividade e o estilo de cada interpretação, sobretudo
as de Gena Rowlans e Peter Falk, até o ponto em que eles tomam a cena para si
mesmos, para a assinarem, não para trabalhá-la por dentro dos personagens. O
dramático em Uma Mulher Sob Influência, a rigor, surge dessa exposição
dos atores, não necessariamente do problema vivido pelos personagens – caso das
estratégias naturalistas. E o naturalismo, se aqui fosse tomado como referência,
nos traria problemas (pelo caráter de obra em construção, conforme a hipótese
aqui esboçada). Nas interações entre pais e filhos, por exemplo, existem alguns
curtos-circuitos, com momentos nos quais as crianças não estão no espírito da
cena, trazendo certo grau de reflexividade, pensada ou não. Portanto, a melhor
maneira de aceitar o filme exatamente como ele se apresenta, é vê-lo como projeto,
mais que como obra, com tudo que há de arestas em projetos. O
que não significa que essas arestas, tão saudáveis no cinema moderno, sejam necessariamente
arejadas. No caso, são asfixiantes. E pode dar a impressão, como de fato ocorreu,
de se testemunhar uma performance de atores empenhados em serem mais expressivos
como atores que como personagens. Essa entrega à própria performance, mais que
à interpretação, carrega um tanto de exibicionismo, de vaidade, de orgulho de
se ter chegado aonde se chegou, de se ter sido submetido a um constrangimento
auto-imposto. Está nessa operação de desmascaramento dos atores a força, e o limite,
de Uma Mulher Sob Influência.
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