ensaios
Meia noite sem Paris
O cinema de catálogo de Woody Allen
por Cléber Eduardo

Woody Allen, diria Didi Mocó, é o da poltrona. Seja quando filma sua Manhattan, seja quando filma Paris, não se interessa pelo espaço das cidades, mas apenas pelos clichês de seu próprio olhar, direcionados para os clichês dos olhares do senso comum sobre esses espaços urbanos. Um cineasta que, com a câmera na rua, nos restaurantes ou nos apartamentos, filma de seu quarto. Porque em sua rua, em vez da pulsação e da diversidade de dois centros urbanos do mundo, só há o Seu olhar. Um autor se constrói, principalmente, na relação com o que olha, não com a imposição de sua visão. Esse outro autor, mais que auteur, é aut-(or)-ista. Pode ser o que muitos procuram, pelo menos com o que muitos se satisfazem, mas partamos desse princípio, o da procura e da satisfação, porque nele residem os princípios das diferenças, se não em relação a toda uma forma de perceber o cinema, certamente de se relacionar com o Allen dos espaços de Manhattan (a cidade e não só o filme) e Paris.

Meia Noite em Paris
, antes de ser amarrado pelo cordão umbilical a Manhattan, é semeado por A Era do Rádio, que é também um olhar de manual histórico, também banhado em uma doce melancolia apenas para afirmar uma posição positiva sobre a vida (apesar das faltas fundadoras dos mundos subjetivos). Meia Noite em Paris é, antes de tudo, um filme centrado na falta (e não apenas nas ausências do protagonista). O filme não ocupa os espaços, ignora Paris como corpo, como personalidade, como organismo, para olhar dela o museu dos mitos, no caso o dos mitos artísticos aos quais o protagonista se agarra, a ponto mesmo de se juntar a eles em uma vivência paralela e noturna, soma de Rosa Púrpura do Cairo com sonhos eróticos, um e outros marcados pelo mesmo pior momento: o de acordar. Não há nada fora do sonho e do fetiche, que se tornam escapes para a frustração de ser americano pragmático do século XXI (casado com uma militante do consumismo vulgar com casa em Malibu) e não um artista francês dos anos 1920, cuja amante é dotada de poderes artísticos e temperamento tumultuado. O protagonista quer a farra dos artistas e ser altamente considerado. Quer ser artista pelas razões menos relacionadas com o ato da criação.

Se é para encararmos apenas como comédia para a elite cultural ordinária (não especialistas, talvez também não amadores, mas consumidores apenas), o posicionamento central é o da percepção mais sensível: após os primeiros minutos de contatos ariscos com um americano pedante e sabichão sobre os bastidores históricos das celebridades de Paris (quem pegou quem) e o primeiro momento de contato noturno com as imagens fantasmas dos artistas dos anos 20, todo o restante tem efeito de um andar em carrossel com cinto de segurança. Repetitivo, previsível, dado a enjôos. Quem curte o programa talvez se realize pela lógica do pertencimento a uma rede de referências em comum com o artista Allen, mais ou menos como os consumidores e amadores do pop mais industrializado ri com intensidade performática quando reconhece uma cena parodiada em alguma comédia com espírito de deboche cinéfilo.  Pertencimento e reconhecimento (das imagens, de sua cultura, de seu repertório). Talvez parte dos espectadores nutra parte de seu necessário prazer de pertencimento com a familiaridade em relação aos artistas-personagens,  sem necessariamente ser afetada por suas artes, sem necessariamente ter contato com suas criações.

Portanto, voltemos aos princípios, ao princípio, ao principal. Assim como existe o autor e o aut-(or)-ista, existe ainda a arte e o artista. E Allen, como princípio, é artista. E está interessado neles, nos artistas, na mitologia, na simbolização, nos clichês dos olhares para suas imagens e de suas obras. A arte propriamente dita, para a visão de Allen, só interessa como matéria-prima a partir da qual se fabula, se organiza discursos, se absorve o que resta delas para o campo da cultura, dos mitos e dos fetiches; para os museus, mausoléus e imaginários cultivados pela consciência, pelas diluições e pelas vulgarizações dos encantamentos. Allen se relaciona com a vida como leitor de reportagens de comportamento de semanários generalistas e se coloca em espaço público como leitor de guia dos pontos turísticos de viagens ao modo CVC. Curiosamente, no clipe com esses pontos CVC (cada qual com dois segundos), não há salas de cinema, sequer livrarias pensadas como tais, como espaços, não apenas como ponto de venda. Só importa o triunfo da arquitetura sem a pulsação de suas formas de ocupação em trânsito. Só importa o que está à venda (para o uso do clichê), para o que já se consome como souvenir do imaginário.

Uma mesma forma de se relacionar com a arte (pelos artistas) e com uma cidade (apenas por suas formas estáticas, não por suas formas moventes, essas sim formas estéticas). Essa forma de Meia Noite em Paris é de fato uma noite pela metade, não jornadas pela madrugada, mas coloca a Paris da contemporaneidade (essa de uma lógica propagandeada pelo filme ao final: viva seu tempo) fora de quadro. Ruas oníricas e vazias nas noturnas. Ambientes interiores da alta classe nas diurnas.É um filme construído sobre os cordões de isolamento entre a câmera, seus atores e a cidade ausente no filme, apenas homenageada como espaço de fantasmas. Paris é o que falta. Allen, mesmo fora do elenco, é o que sobra. Esse encapsulamento do olhar parece progredir no período durante o qual tem filmado em cidades e com dinheiro de outros países. Ao internacionalizar seus enquadramentos, evidenciou seu olhar caipira e deslumbrado com o cosmopolistismo de fechada, que procura transformar em humor essa posição, mas agora sem um mínimo da corrosividade do olhar para os modelos novaiorquinos da elite cultural de Nova York. O turista, quando em Manhattan, pelo menos, era mais atento, pois estava mais próximo. O de Paris, assim como o de Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), assim como o dos ambientes britânicos (Match Point), está emparedado. Poderia ter filmado de seu notebook na cama de algum hotel no Quartier Latin, a navegar por sites sobre a biografia sexual e afetiva de seus artistas preferidos.

É questão de aceitar ou não, de ser afetado na sensibilidade ou não, de ver no cinema apenas uma forma de não percebermos o peso do tempo e da experiência cotidiana, ou a possibilidade de uma relação com o mundo, menos ou mais simbolizada, mas ainda uma relação entre o olhar e o que está sendo olhado, não apenas entre o olhar e aquele que olha.
Pode não ser uma condensação dos piores momentos de Allen, mas é provavelmente os dos piores de Owen Wilson, não por sua responsabilidade completa. Ele torna apática a empatia e o deslumbramento de um adulto infantilizado em sua relação com a arte, que a trata como brinquedinho, que adentra a seu mundo como quem joga um videogame e nele quer morar e, quando desalojado, cai na real em um ponte sobre o Sena, deserta, co-habitada apenas por uma força do acaso (do roteiro) em forma de jovem disponível para o encontro.

É um filme para crianças, em amplo aspecto, mas para crianças pouco inocentes, sem abertura para o desconhecido, apenas para o que se pode reconhecer (mesmo à distância, mesmo de forma terceirizada, essa experiência Wikipedia), que entendem de alguma forma o pragmatismo das sensações, que se regozijam por decodificar os códigos, que se satisfazem por estarem inscritas no mundo da alta cultura (de baixo nível de experiência com a arte).

Agosto de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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