O Lutador (The Wrestler),
de Darren Aronofsky (EUA/França, 2008)
por Diego Assunção

Mickey Rourke move o mundo

“Quem sabe com isso eu não volte ao topo?”, se pergunta o personagem de Mickey Rourke em O Lutador, ao ser convidado para participar de um duelo com o mais célebre adversário que tinha nos anos 80, quando a luta livre e ele estavam no auge. Curiosamente, o próprio filme vem sendo tratado como o triunfal retorno do ator Mickey Rourke após sua dedicação ao boxe em boa parte dos anos 90 – algo que é apenas uma meia-verdade, já que Rourke, esteve presente no cinema nos últimos anos, mesmo que voltando a pequenas participações (como aquela do começo da carreira, em Corpos Ardentes, onde roubava a cena com sua presença misteriosa e inquietante), e ainda que em papéis de segunda e até de quinta categoria (como o vilão de A Colônia ou o advogado pilantra de O Homem que Fazia Chover). Até por isso, seu retorno triunfal deve ser visto não como a volta de alguém desaparecido, mas sim como a consagração de um dos filhos rebeldes de Hollywood. Com a fala mansa e conscienciosa, o olhar distante, porém juvenil, e com um andar habitualmente entre o energético e o arrastado (que dá a impressão de flutuar em cena), Rourke impôs uma grandeza e dignidade aos perdedores da América. A expressão sempre no limite da tragédia e da ironia diz: “o mundo pode desabar e cair na minha cabeça, não me importo”.

Se de tempos em tempos há um grande filme que funciona mais como um documentário sobre o seu ator – como antes foi No Silêncio da Noite, um ensaio de Nicholas Ray sobre Humphrey Bogart; Aguirre, uma investigação de Werner Herzog a respeito de Klaus Kinski, e Acossado, um tributo de Godard ao Jean-Paul Belmondo -, O Lutador é um desses raros exemplos: um tratado sobre Mickey Rourke. Como o seu personagem, Rourke sempre foi o rei no seu próprio ringue. Ator de uma intensidade digna de James Cagney, na tela era como se ninguém pudesse tocá-lo – ou, como colocou Meinolf Zurhorst no seu livro sobre o anti-astro: “ele consegue mostrar que só com a expressão de seu rosto é capaz de mover o mundo” (palavras postas em cena quando, num momento do filme, vê-se o filho da stripper a brincar com o boneco-réplica de Randy, fazendo-o derrotar um brinquedo muito maior do que ele, um robô modernoso). Interpretar e ser é uma coisa só. Assim, cada linha de diálogo é proferida por Rourke como se realmente fossem palavras entaladas na sua garganta. Do mesmo modo, cada sacrifício que o lutador impõe ao seu corpo (como se cortar com uma lâmina escondida para reforçar o realismo dos combates previamente coreografados) é um gesto de entrega não muito diferente do processo que, geralmente, Rourke viveu durante algumas filmagens.

O mais surpreendente do filme é que o próprio diretor, Darren Aronofsky, filma tudo com muita humildade. Famoso por obras virtuosas, cheio de marras de estilo (como Réquiem para um Sonho e Fonte da Vida), aqui ele deixa as imagens aceleradas e sobrepostas repetidamente, a tela dividida e todo artifício que fez escola dos pretensos jovens diretores metidos a grandes artistas para se concentrar no essencial, o universo do seu personagem. Quando, depois dos créditos iniciais, a câmera se concentra quase dez minutos em acompanhar a caminhada do personagem do fim de mais um expediente de lutas até a chegada em seu trailer, Aronofsky não faz isso para mostrar que sabe fazer um plano-seqüência, mas deixa sim evidente o que interessa ali na dramaturgia: o corpo do seu ator. Invocando a aparição inicial de Rourke em Horas de Desespero, no qual Michael Cimino também hesitava em mostrar o rosto do seu personagem, Aronofsky acompanha obsessivamente o personagem, ao mesmo tempo em que evita mostrá-lo por completo, como se tivesse preparando tanto o espectador para rever (após vinte anos, diz a legenda no início da cena) o maciste indestrutível dos cartazes expostos nos créditos em sua faceta extraordinariamente humana (oposta da imagem mítica dos pôsteres) como também se evitasse “cutucar a fera” que caminha a sua frente, esse homem corpulento, um tanto cansado e cabisbaixo que distribuí autógrafos e cumprimentos a quem tromba o seu caminho.

O misto de fascínio e receio do diretor pelo seu personagem está presente neste inicio de maneira magistral, e é esse sentimento contraditório que leva o filme para outro nível, além do fetichismo no qual o filme poderia resvalar caso se apropriasse da mítica que o ator carrega. O Lutador se distancia da pretensão de destruir ídolos. Seguindo a lição de John Ford, Aronofsky imprime  a lenda. Ao final, quando The Ram voa pelo quadro, praticamente rasgando-o, o diretor afirma a mitologia por trás do seu herói. Por mais que o gesto de completar o golpe final possa levar à constatação da mortalidade do ídolo, é terminando o seu show que o lutador reafirma sua condição de imortal (ao menos dentro do ringue). Aronofsky imprime a lenda, mas não sem antes mostrar a verdade por trás dela. A cena em que o diretor resolve decompor uma das cenas de luta é exemplar nesse sentido: enquanto, nos bastidores, o personagem de Rourke recebe os cuidados do médico, que trata cada um dos ferimentos adquiridos na luta, tal cena é interditada por flashs que mostram cada detalhe da luta ocorrida antes disso. Ali, o diretor expõe os mecanismos por trás da luta previamente coreografa. De maneira bastante crua, vê-se que não há muitos truques, realmente. Os lutadores trabalham como atores, programando cada movimento, mas os ferimentos que um impõe ao outro são reais. Como o cinema, a premissa da coisa pode ser de “mentirinha”, mas o resultado sempre alcança o real. A verdade do falso.

The Ram pode ser um personagem criado por um fracassado açougueiro e encaixotador de supermercado, mas no momento em que ele passa a acreditar ser essa sua identidade, ninguém pode brecá-lo. Assim, cada passo da narrativa de Aronofsky nos mostra as fraquezas, a humanidade do ídolo. Esvazia o mito para, no fundo, revitalizá-lo com novo sangue. Emblemáticos são os momentos em que, contrariado, Randy pede, quase implorando, para ser tratado como Randy e não como o cara do documento de identidade – um funcionário/indivíduo qualquer que não tem a mítica e a personalidade que adquiriu nos ringues. Inclusive quando tenta fugir da persona criada nos longínquos anos 80, no momento em que é reconhecido no balcão do supermercado onde trabalha como atendente, Randy nega ser o lutador, mas não consegue escapar do “monstro” que criou. Num momento de fúria incontida, corta propositalmente o seu dedo (como se repetisse uma coreografia qualquer de uma luta) para fugir tanto do momento constrangedor do antigo fã (que diz algo como: “você parece o The Ram, só que muito mais velho”) como do emprego que detesta. A verdade, resumindo, constrói a lenda. Cada passo em falso na vida privada do personagem faz com que ele se afunde ainda mais no personagem que criou. “A vida não dá a mínima para mim, mas no ringue eu sou importante”, diz ao final quando negligencia viver uma vida longa e real para ter os últimos suspiros de uma autêntica adoração por trás de um aparente falso espetáculo – que, no fundo, é tudo o que é real para ele.

O Lutador, ao contrário do que alguns críticos disseram, não encontra parentescos com filmes iguais Rocky Balboa ou Touro Indomável. A obra de referência parece mesmo ter sido Homeboy (foto ao lado), roteirizado por Rourke e considerado na época seu projeto dos sonhos. Assim como o filme de Aronofsky começa o seu filme mostrando a glória de um ídolo caído – os pôsteres imensos, as manchetes adulatórias, as fotos em poses gloriosas -, Homeboy tinha início que esboçava algo muito parecido, com a câmera mostrando o quarto de Johnny Walker (o boxeador caladão e talentoso, mas indisciplinado) com alguns de seus troféus. Nos dois trabalhos o ator encarna lutadores que perderam o bonde (o personagem de Homeboy se lamenta quando finalmente encontra um treinador exigente: “deveria ter encontrado com você antes, pois você poderia ter me transformado num grande lutador”) e também a saúde (no primeiro filme, Rourke sofre da cabeça, enquanto no segundo é o coração). Numa comparação musical, O Lutador seria a versão hard rock de uma cantiga country, já que Homeboy tinha os dois pés fincados no terreno do faroeste e a alma de um cavaleiro solitário. Se bancar o cowboy em plenos anos 80 era algo fora de moda, fazer o culto de um rock n’ roll simples, inconseqüente e cafona, em pleno século XXI não é muito diferente.

Como dizia um personagem de Sin City a respeito de Marv (feito por Rourke na ocasião): “a maioria pensa que ele é louco, mas ele só teve o azar de nascer na época errada”. A afirmativa pode ser aplicada ao próprio ator, o que leva a crer que não é nada absurdo muitos ainda enxergarem-no como mero monstro de um freak show. Nesse mundo muito polido, Rourke talvez seja mesmo um freak, já que nunca foi o mero galã que tanto o público quanto a indústria de Hollywood esperavam que ele fosse. A monstruosidade dele está presente em O Lutador, a cada plano. Em certos momentos até parece que ele faz a sua versão do Frankenstein de Boris Karloff, como quando brinca com as crianças após elas o acordarem enquanto dormia no seu furgão (igual a um ogro, ele grunhe, carrega e joga a criançada) ou até na caminhada solitária do início. Mais uma vez, Rourke se mostra apto a mover o mundo.

Fevereiro de 2009

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