2em1
Primeiras imagens do "infilmável"
As Torres Gêmeas (World
Trade Center), de Oliver Stone (EUA, 2006);
Vôo United 93 (United 93), de Paul Greengrass (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
Não deixa de ser fascinante esta chegada quase
simultânea aos cinemas do Brasil dos dois filmes baseados nos
acontecimentos de 11 de setembro de 2001. São as primeiras “grandes
ficções” em cima daqueles eventos que chegaram a ser considerados
por algum tempo tão traumáticos que nunca poderiam ser encenados
(realmente as pessoas não conhecem a indústria do entretenimento
– e o próprio público e seus interesses, em última instância).
Olha para os dois filmes é, antes de tudo, olhar para quais discursos
dominam atualmente o grande público americano (para quem são destinados,
em primeiro lugar) e o sistema produtivo do mainstream.
Assim, aquele que quiser reclamar dos filmes pedindo uma defesa
dos motivos dos terroristas, por exemplo, nem precisa ir ao cinema:
lógico que este discurso não cabe no formato de produção destes
filmes, e a reclamação pode ser feita sem nem vê-los. No meu caso,
me pareceu mais interessante ir ver não quais filmes não foram
feitos, mas sim quais filmes os diretores resolveram/puderam fazer,
suas semelhanças e suas diferenças, e o que seus discursos parecem
indicar.
De
saída há uma diferença crucial sobre os acontecimentos reais retratados
nos dois filmes: um (os ataques ao World Trade Center) foi absurdamente
visto em escala mundial (o filme inclusive coloca isso em cena
numa curiosa seqüência filmada em vídeo); o outro (a queda do
vôo 93) aconteceu fora das vistas de todos. Portanto, o desafio
de cada cineasta já parece, no primeiro ponto, completamente distinto:
a Oliver Stone cabe encontrar uma narrativa sobre o que todos
nós acompanhamos em tempo real, enquanto a Paul Greengrass fica
a liberdade maior de filmar o que “ninguém viu”. Isso parece determinar
de cara a diferença fundamental entre os dois filmes: o de Stone
como uma narrativa clássica de pessoas comuns e seus dramas individuais
que seguem as regras de toda uma tradição do cinema; e o de Greengrass
com o uso do estilo “verídico” de linguagem constantemente cheia
de cortes abruptos e uma câmera insistentemente manuseada. Um
precisa fabular sobre uma realidade que vimos, o outro precisa
nos convencer da realidade do que não vimos.
Ver,
aliás, é um tema predominante nos dois filmes: se todas as coberturas
de TV daquele dia repetiam que aquelas cenas de Nova York pareciam
“coisa de cinema”, “impossíveis de serem inventadas por Hollywood”,
os dois filmes admitem que aqui eles têm uma desvantagem perante
a realidade: por isso mesmo, nenhum dos dois trata de tentar reconstituir
a catástrofe em imagens espetaculares. Para quem viu (ao vivo
ou gravado) os aviões se espatifando com as torres, e estas vindo
abaixo, não há sentido algum em observar uma “reencenação” destes
momentos (daí porque as cenas mais fracas dos filmes de Stone
são justamente as da chegada dos policiais no WTC: nada encenado
ali em volta parece ter um oitavo da dramaticidade das inúmeras
imagens do entorno do prédio que circularam naquele dia – e que
o filme usa, mais à frente). Daí que, nos dois filmes, não se
trata de ver o que se passa, mas de experimentar justamente a
vida daqueles que viam menos, porque estavam no olho do furacão.
O que passa a ter importância fundamental aqui, então, é justamente
o que estes personagens viam. Daí a força inegável da encenação
dos olhares incrédulos (uma constante nos dois filmes): para o
alto, em Torres Gêmeas, para fora da torre de controle
de Nova York ou para as TV e telas de vídeo em Vôo United 93.
É onde o espectador mais se identifica com os personagens, afinal
nós todos olhamos para aquelas imagens de forma semelhante.
É curioso notarr como os dois filmes, feitos no
que ainda poderia ser chamado “o calor da hora”, se preocupam
muito com a questão de uma “verdade da encenação”. Em Vôo United
93, não bastando buscar o diretor Paul Greengrass (cuja fama
internacional veio com o Urso de Ouro que ganhou em Berlim por
Domingo Sangrento, ao filmar um evento real da história
inglesa “como se as câmeras estivessem lá”), o
filme ainda se deu ao interessante trabalho/risco de escalar uma
série de “personagens reais” no seu elenco: tanto o coordenador
da agência aérea americana quanto o militar que coordenava as
(não) ações naquele dia são interpretados por eles mesmos – como
aliás, vários outros controladores de vôo também. Verismos à parte,
o que importa é que todos são mesmo ótimos “atores de si mesmo”
– que é o que importa para o filme. No caso específico do comandante
militar, dá mesmo curiosidade de saber se sua interpretação era
propositalmente dúbia sobre a adequação do seu papel naquele teatro
de operações.
Se Oliver Stone não chega a este exagero com o
elenco, ainda assim tenta atrelar o tempo inteiro seu filme a
uma “verdade” do americano médio. Daí o começo do filme fazer
tanta questão de buscar a noção de rotina – que é resgatada no
final com os trens vazios que indicam, com inegável felicidade,
a idéia de que “não há mais rotina possível”. Em ambos os filmes,
pode-se encontrar indícios de que esta verdade era mais do que
uma preocupação, quase uma imposição das condições de produção
dos filmes – afinal ambos são baseados em “relatos de sobreviventes”,
onde não ficaria muito bem ir contra a visão que estes tinham.
Curiosamente, há uma diferença clara: no caso de As Torres
Gêmeas, os sobreviventes são os protagonistas, enquanto no
Vôo United 93, os sobreviventes são a ausência estruturante
da narrativa. Não há nenhum plano dos familiares que falam nos
celulares e telefones aéreos com os passageiros do vôo: no entanto,
eles assombram a produção desde o começo do projeto, e
são de fato suas grandes estrelas, como ficou claro pela presença
deles no tapete vermelho do lançamento mundial do filme, em Cannes.
A “verdade” que importa aqui, então, é a deste grupo de sobreviventes,
destes “heróis americanos”.
Mas, curiosamente, estes heróis americanos surgem
em cena um tanto dificultados na tarefa de exercer seu heroísmo:
em ambos os casos, o que vemos antes de tudo é um estupor perante
o inimaginável – principalmente no retrato das autoridades em
Vôo United 93. Se os “sobreviventes” de Torres Gêmeas são
filmados como “heróis da resistência” (literalmente), por outro
lado eles são completamente incapazes de ação, como nunca seriam
os heróis clássicos. Não só na hora em que isso fica mais óbvio
(ou seja, soterrados em escombros), como mesmo na sua chegada
à cena dos acontecimentos, onde o vagar determinado, mas um tanto
inútil, do sargento e seus homens parece o próprio retrato do
homem perdido no meio da História. De fato, eles não salvam ninguém
na sua passagem pelo World Trade Center. A inutilidade das ações
heróicas também saltam aos olhos em Vôo
United 93, afinal apesar da nobreza de espírito de
todos os envolvidos, o destino final daquele avião nos
parece mesmo sempre incerto (inclusive por conta da tensão
quase incapacitante dos terroristas). Aqueles personagens que
tomam o avião não são exatamente heróis, e sim verdadeiros
zumbis: mortos-vivos cujas
ações heróicas parecem tão nobres quanto inúteis(o que só torna
quase patética a necessidade daqueles que sobrevivem de torná-los
figuras míticas, como podemos ver aqui ou nas fotos ao lado).
Se há um herói, no sentido clássico do filme de Stone, ele surge
na figura do esquisitíssimo personagem do ex-fuzileiro naval que
descobre os dois policiais nos escombros. Este talvez seja o personagem
mais interessante do filme, justamente pela sua quase irrealidade:
desde o início da sua narrativa (numa igreja longe de Nova Iorque),
passando por sua “retransformação” em soldado, até o final do
filme (em que ele diz que vai “vingar aquilo tudo”), este personagem
surge como o mais “cinematográfico” (ou seja, não verídico) de
todos. Claro
que, em meio ao caos do Iraque de 2006, saber que ele foi “vingar
aquilo tudo” parece o mais perto que Stone chega de uma mensagem
política sobre o papel do “herói americano” hoje. Sem dúvida,
a simples presença deste personagem pode ser considerada
dúbia, já Stone não dá uma chave de
interpretação determinada para sua persona peculiar
(que deve muito à figura bizarra do ator Michael Shannon,
que em Bug, de William Friedkin, interpreta um personagem
igualmente insano, mas no espectro político totalmente
oposto ao deste aqui). Mas, é difícil dar algum
benefício da dúvida a Stone pelo movimento mais
calhorda que o filme faz, de um fechamento redentor dois anos
depois, quando sabemos que naquele momento o verdadeiro "felizes
para sempre" do filme estava sendo sabotado em Bagdá.
Pode-se alegar que a ausência da menção seja
uma posição política disfarçada, mas
realmente é preciso muita criatividade para enxergar isso
no desfecho aqui exposto.
A política, aliás, parece mesmo a grande ausente
dos dois filmes. Como disse no começo, por um lado isso seria
de se esperar. Mas há gradações curiosas entre os dois filmes.
No de Stone, toda a carga que possa existir está mesmo neste personagem
do ex-futuro-marine: não vemos por nenhum momento qualquer
referência aos terroristas e seus motivos, nem uma relação com
as autoridades americanas (claro que poderíamos assumir os policiais
como as “autoridades americanas”, mas o filme não segue este caminho).
Stone tenta se manter fiel assim ao “pequeno americano”, que sempre
foi seu interesse nestas narrativas históricas (mesmo quando filmava
Nixon ou a morte de JFK). Só que o que parece não funcionar aqui
é que a deslocalização de sua narrativa chega ao ponto da falta
de interesse: os dois policiais no fundo de um monte de concreto
não parecem em nada muito diferentes do bebê Jéssica no fundo
de um poço, e assim a montagem paralela entre suas conversas e
a dor de suas famílias toma boa parte das longas duas horas e
dez do filme com a mesma pertinência e dramaticidade de qualquer
Supercine de má qualidade (onde só a frase final de Cage para
a esposa - “você me manteve vivo” - tem alguma força). Com o agravante
sempre de que sabemos qual será o final daquilo tudo. O único
peso que o filme tem, desculpem o trocadilho, é o do concreto
sobre os personagens.
Já
Greengrass, com sua “operação tempo real” causa inegável efeito
no espectador (físico, inclusive, dá para enjoar com os excessos
da câmera). Seu filme tem um quê de filme de terror exasperante,
onde o inimigo não chega a ser exatamente o terrorista (que surgem
no filme em tintas bastante neutras, até – especialmente na montagem
paralela entre suas rezas e as dos passageiros do avião), mas
a certeza da morte que chega – e o medo comum à boa parte da humanidade,
da queda de um avião. Ao contrário dos personagens de Stone, é
exatamente o conhecimento que temos do fim que torna o filme angustiante.
Longe de um filme perfeito, o filme de Greengrass pelo menos nos
coloca uma série de questões intrigantes sobre as relações da
encenação com a realidade, inclusive sobre uma certa pornografia
mórbida deste “querermos ver tudo como foi”. E ao final de “vermos
tudo”, fica um certo amargor na boca sobre a experiência humana
face ao imponderável, que o filme de Stone nem de perto atinge.
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