in loco - cobertura dos festivais
Wuthering Heights
, de Andrea Arnold (Reino Unido, 2011)
por Raul Arthuso

Amor de carne e osso

Andrea Arnold ascendeu no mundo do cinema como uma realizadora alinhada com o realismo social inglês, marca registrada de Ken Loach. Já em seu curta-metragem WASP, cuja carreira em festivais chamou a atenção para a diretora, Arnold mostrava seu gosto pela crueza da encenação, pelo uso da câmera na mão, dos cortes secos e da imagem suja do abandono da periferia das cidades inglesas. Depois de dois longas, Arnold desemboca em uma adaptação de um clássico da literatura inglesa do século XIX, centrado principalmente nas relações afetivas. Não que seu desejo “realista-social” não esteja em cena no filme, pelo contrário: muitas escolhas inusitadas na transposição da obra literária são acréscimos para trazer o filme para uma zona de conforto do cinema de Arnold.

A primeira delas, a escolha de manter os diálogos com gírias e palavrões típicos do linguajar da periferia inglesa, mais que causar estranhamento, realça a brutalidade de se viver naquelas colinas uivantes no início do século XIX. Pois o espaço de ação do filme está, literalmente, afundado na lama. A sujeira do espaço se reflete na vida das personagens de forma tão hostil quanto a "máquina do mundo" à qual as pessoas têm de tentar sobreviver. Outra opção interessante é a escolha de atores negros para o papel de Heathcliff – Solomon Glave na infância, James Howson na fase adulta. Se não é algo abertamente descrito no livro – a origem de Heathcliff (e, portanto, sua etnia) é um mistério na obra de Brönte – essa opção traz relações raciais e de classe para dentro desse contexto. Não é raro ouvir Heathcliff ser chamado de “nigga” por Hindley (Lee Shaw), que não aceita o estranho trazido por seu pai para casa.

Essas escolhas claramente se alinham com o que Andrea Arnold tem mostrado como maior interesse em seu cinema: as personagens lutando pela sobrevivência num mundo regido por regras sociais opressoras àqueles que são mais sensíveis. É o caso de Heathcliff: no início ele é tratado como um animal selvagem, apesar de já mostrar sua sensibilidade à flor da pele, o que retroalimenta sua pequena selvageria. Quando adulto, ele se refina, mas mantém sua sensibilidade, que se mostra inadequada num mundo bruto, sujo e impiedoso para com o indivíduo. Heathcliff, nesse sentido, não está tão distante de Zöe e Mia, protagonistas de WASP e Fish Tank, respectivamente.

O verdadeiro ganho que Wuthering Heights representa no cinema de Arnold está no enfrentamento da história de amor trágica de Heathcliff e Catherine (Shannon Beer/Kaya Scodelario). Pois, se a realizadora sempre se interessou por captar a aspereza da vida de suas personagens de maneira direta, realçando a hostilidade do mundo, em Wuthering Heights grande parte da força do filme está em deter-se sobre uma relação de amor - no caso, trágica, pois nunca se concretizará. E, então, a grande preocupação reside em filmar esse amor como algo epidérmico, sensitivo, sublime, mas principalmente carnal, ligado ao corpo e sua impossibilidade, pela distância. Em seu texto sobre Brilho de uma Paixão, de Jane Campion, o crítico Juliano Gomes diz algo que se aproxima do que ocorre aqui em Wuthering Heights: "O amor não imprime na imagem, é impossível fazê-lo aparecer em si. O que vemos é como ele se expressa nas coisas, e como se dão estas atrações". A câmera se coloca bem perto das personagens, observa com ternura o toque das mãos, os cabelos ao vento, os olhares sedutores e seduzidos. Mas também marca a distância do toque impossível, do beijo proibido, dos olhos que se atraem intensamente, mas devem permanecer apenas como um olhar terno. A diferença entre o filme de Campion e este reside no uso do espaço e do cenário de época que, se lá materializam a relação dos protagonistas (e, nesse sentido, deixam de ser um cenário de época apenas), aqui esse universo de época se alinha com o que de mais conhecido há no cinema da diretora, oprimindo as personagens - enquanto o drama, diferentemente do restante de seu cinema, é pleno de ternura e de uma relação táctil entre os corpos.

O sublime que o amor das personagens alcança é plenamente físico. No primeiro momento, quando Catherine e Heathcliff ainda são crianças, sua relação já é construída de maneira carnal. No ápice disso, os dois rolam na lama brincando e terminam a cena um sobre o outro, sérios, como se num ato sexual. Algumas cenas depois, como uma punição dada por seu pai, Catherine irá lamber as feridas do garoto. Já construída aqui na infância, a carnalidade do amor dos dois no filme irá se refletir na fase adulta, quando Heathcliff volta para rever Catherine, casada com outro homem e grávida. Pois, o amor entre os dois não pode se concretizar senão pelo ato carnal, algo que lhes é negado em todo o filme: n ão há entre os dois um beijo sequer. Daí a escolha pelo formato de janela 1.33 se mostrar potente, pois mantém as partes do corpo e seus detalhes no centro do quadro, realçando a proximidade destes, mas com aquela pequena distância que potencializa a impossibilidade de concretização do sentimento. Se Heathcliff e Cathy se amam, mas não podem se casar por questões de sobrevivência, o amor não acontece de fato porque eles nunca transformam a potência em ato (aqui, físico). Que Arnold construa as relações sociais, continuando em parte aquilo que estabeleceu seu cinema no cenário internacional até então, mas deixe isso em segundo plano, para se deter sobre a plenitude do amor e a impossibilidade dele através de um olhar que escapa do mero "realismo social" é algo realmente novo em sua trajetória.

Novembro de 2011

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