Xingu, de Cao Hamburguer
(Brasil, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira
“Acabou
a diferença, acabou a cultura, acabou o índio”?
Realizar
uma obra sobre um tema histórico significa travar escolhas
não somente relativas ao evento, mas principalmente sobre
quais faces do evento ocultar e quais mostrar, e o viés
pelo qual mostrá-las. Em Xingu, por uma certa
maneira de organização cênica e de encenação,
Cao Hamburguer instaura um conflito que diz menos respeito à
relação entre os brancos e os índios, e mais
à relação do homem branco com seus próprios
valores cívicos. Não é somente nos lemas
entoados pela voz em off dos irmãos Villas-Bôas
que podemos entrever sua política, mas na forma como o
diretor articula estes discursos em imagens e na dramatização
destas imagens. Ela está nas poses dos três heróis
e na mecânica de suas falas, no silêncio dos índios,
na insistência de um ponto-de-vista em primeira pessoa,
ou, por exemplo, no luminismo cromático de verdes, beges,
marrons e pretos borrados das florestas.
Sob os olhos do diretor, o indígena se torna objeto de um voyeurismo, subentendido somente a partir de certos valores éticos (um tanto europeus) de purismo e preservação da diferença. Ora, a incongruência é que, nas quase duas horas do filme, esta diferença nunca se apresenta como tal. Toda a relação é de cima para baixo, nunca entre indivíduos iguais. São os brancos que lhes apresentam armas, panelas ou aviões. Os indígenas, por sua vez, infantilizados, nada apresentam aos brancos. Nenhuma troca direta, nenhuma forma de simbiose ou gênese. Numa cena irrisória, Orlando se pinta e participa de um ritual de celebração como se este fosse o carnaval. Um pouco depois, Cláudio troca olhares com uma índia e a “chama para o canto” como se estivesse numa boate ou festinha. A trama que Hamburguer arma não é a da descoberta de uma civilização indígena por três irmãos, e a maneira como ela transformou suas vidas, mas a da paixão de três irmãos por seus próprios ideais éticos. É trama de uma baita ressaca moral, típica no circuito europeu “de arte”, que só busca purgar o próprio desenvolvimento de sua civilização.
Aos
olhos deste purismo paternalista, a mestiçagem à
qual a arte brasileira já dedicou um bom número
de tratados se apresenta como o que há de mais vil, pois
é justamente o seu inverso. Entrar em contato com os índios
já é conspurcá-los. A única solução
é isolá-los em uma reserva para retardar o processo
civilizatório e prepará-los para a sua chegada inevitável.
Na europopéia que é Xingu, não se
enxerga qualquer via de mão dupla na miscigenação.
É melhor que o outro fique isolado como um objeto de fascínio
e curiosidade fetichista, incompreensível, intocável,
como no último quadro.
Nesse
sentido, as escolhas formais de Cao Hamburguer aproximam Xingu
menos do breve flerte por gênero com o processo de simbiose
cultural de Cameron ou os westerns nostálgicos
de Ford, e acabam como uma versão invertida, mas não
diferente, de José Padilha. No lugar do radicalismo ingênuo
da direita, entram em cena as convicções paternalistas
do elitismo cultural da esquerda. Dois mesmos lados da moeda refletidos
numa única forma que elege um herói puramente político,
que justifica (de forma intelectual, nunca afetiva) o gesto de
botar uma arma na cabeça de um índio para a salvaguarda
de sua pureza contra si mesmo, tudo em nome de um idealismo maquiavélico
que, buscando ser politicamente correto, age como se os fins políticos
justificassem os meios. E os meios não são só
os brancos e os índios; é o próprio cinema
posto em sacrifício.
Abril de 2012
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