sessão cinética
As Coisas Simples da Vida (Yi Yi),
de Edward Yang (Taiwan/Japão, 2000)
por Luiz Soares Júnior

E o Vento nos LevaráUma arte do interstício

O menino Yang-Yang, inquieto inquiridor do mundo das aparências, ganha de presente do pai uma câmera fotográfica. A questão que ele vive se colocando é de ordem ontológica e cognitiva: "Como você pode saber a Verdade se não vê?". O professor o acusa de carregar uma camisinha no bolso, e o menino lhe mostra, para alarido da classe, uma bexiga de festa; a vizinha da briga da noite anterior aparece com óculos escuros, e Yang a escruta para extrair o significado do incidente; a avó não vê o que ele vê (está em coma), portanto não seria o caso de se perguntar se ela ainda existe? Ser e Visão.

Alguém disse (Berkeley?) que somos apenas na medida em que somos percebidos. Mas e se o ser possuir graus intermediários, frestas e escaninhos, que embora inacessíveis (ou menos acessíveis) ao olho humano, continuam sendo? Se o nosso olhar vê apenas uma parte do mundo - ou seja: ocupa um único ponto no espaço e uma trincheira na duração -, quer dizer que o resto do mundo deixou de ser? E se houvesse um olhar que, se não nos permitisse abarcar a totalidade do mundo - portanto, segundo a equação de Yang entre Ver e Ser, a totalidade do que é -, ao menos nos transmitisse um insight do qual apenas raramente, em momentos de perda ou vidência, nos déssemos conta, a saber, que ocupamos no mundo um lugar muito maior do que  a princípio supúnhamos, um espaço de relações, multidimensional e prismático? Este olhar é o da câmera.

E o Vento nos LevaráQue espécie de visão nos é propiciada por este estranho artefato, dotado do poder demiúrgico de fixar presenças, de eternizar o instante?  A câmera vê aquilo que nós, imersos intensamente em nossos próprios dramas, limitados a um único ponto de vista sobre o mundo, não podemos ver. Vê situações de ser, horizontes: espaço, tempo, sucessões no tempo, onipresença hierática do espaço, e os pobres seres que se movem neste quadrante. A câmera também serve para ver o reverso das coisas, suas laterais; ela instaura uma tela projetiva (no sentido duplo assinalado por Daney: projeção material e psicológica, ambas igualmente fantasmagóricas), onde tudo se vê mais e melhor, e portanto (ainda segundo a identificação operada pela criança entre Ser e Visão), existimos absolutamente.

O diagrama do que nos é permitido ver é amplo, acidentado. Instantâneos do infinitesimal: lances de escada, o filigrana do primeiro amor numa criança, o fio de vida que sustenta uma anciã em estado de coma; estados intersticiais ou limítrofes de ser, um quase-nada. Mas também um mundo-canyon, gigantesco, atravessado por devires variáveis, nestes planos generalíssimos que esposam o ponto de vista de Deus. Há um contracampo secreto em todo acontecimento - perímetro recuado, para aquém de nossa finita percepção - que a câmera desvela. Na cena em que chora por não ter acumulado experiência suficiente para compartilhar com a mãe em coma, Min Min está de costas para um espelho; na porta do quarto, fora de quadro, o marido a contempla. O que Min não pode ver - e que nos é frontal e impassivelmente manifesto pela câmera e seu duplo na cena, o espelho - é que está encenando um espetáculo de auto-comiseração que revela o quão importantes para ela são seus atos, seus afetos, sua mise en scène. O signo de narcisismo (o espelho) desmascara o mea culpa filial.

Os três alteres egos de Yang no filme - o menino Yang, seu pai N. J. e  sua irmã Ting-Ting - são personagens que se dedicam a maior parte do tempo a perscrutar o real que os defronta, a observar as anfractuosidades das paisagens afetivas, as estrias que o tempo imprime ao frontispício dos seres. Yang os põe/opõe, num contracampo distante (muitas vezes postados em limiares de portas, espectadores do que acontece), contemplando/auscultando o abismo que se abre diante deles; como quando na cena em que o "barraco" no batizado do bebê subitamente é cortado pelo contracampo, que mostra N.J. na porta do salão, pasmo com o que vê.

Yi YiParte considerável do épico doméstico de Edward Yang se dedica à captura de atmosferas na distância telescópica e crepuscular de uma visão sub specie aeternitates; interessam a Yang não apenas os acontecimentos que modulam a duração - e a tornam visível, encarnada -, mas o espaço intersticial entre os entes, o entre. Badiou e Godard falam do cinema moderno como esta experiência, não apenas das coisas (como no cinema clássico, janela para o mundo), mas das dimensões que vigem entre as coisas, que as levam à alienação e à coexistência, à unidade e à disjunção. As superfícies espelhadas em Yi Yi cumprem uma dupla função; são um estigma de alienação, na medida em que o Eu se refrata numa imagem fantasmagórica, dissociada de si; mas também um meio (de cultura) aquoso onde os horizontes do real - Dentro e Fora, vida privada e Pública, Família e Indivíduo -, coalescem numa unidade superior. O credo monista de Yang - "Tudo está conectado, tudo leva a tudo" - também se revela na ligação, comum a algumas seqüências, que o som off estabelece entre situações a princípio radicalmente distintas, como na sessão de ultrassom do bebê de Li-Li e a reunião de negócios que se segue; ou na cena em que o negociante japonês executa "Ao Luar" num karaokê, e a música ainda ressoa pelo ar quando um melancólico N.J. chega em casa.

O que torna Yang um diretor único é que, embora um modernista - talvez o grande intérprete de Antonioni para o cinema contemporâneo, sendo a rigor muito superior ao próprio mestre -, cultiva um gênio incomum entre modernistas: a densidade romanesca. Seus filmes são exuberantes demonstrações do poder tentacular da narrativa em deflagrar um inextricável réseau de pontos de vista, idiossincracias e rapsódias urbanas sem perder o eixo. Para Yang, o melodrama - arte contrapuntística, nutrida pela alternância melódica entre rarefações e condensações emocionais - é um gênero ideal para falar de crise e alienação (tema constante em sua obra), sobretudo no contexto existencialmente predatório da Taipei neo-capitalista. Mas em Yi Yi, ao contrário de suas obras-primas anteriores, a agorofobia paranóica destes espaços múltiplos e desconectados atinge uma espécie de sublimação confuciana, canto do cisne de uma obra dedicada à sismografia, sempre fragmentada e cambiante, de um Real inacessivelmente Outro, e por isso mesmo fascinante.

Setembro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta