Zuzu Angel, de Sérgio Rezende (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

Zuzu: entre Costa-Gavras e Carlos Coimbra

Não há mais nenhuma novidade na filmografia de Sergio Rezende em relação à matéria-prima histórica de seus filmes: sempre atrás do confronto entre as motivações dos protagonistas e o contexto histórico com o qual têm de lidar, com figuras carismáticas brigando contra o poder (Zuzu, Conselheiro), pela reconfiguração dele (Lamarca, Tenório Cavalcanti), ou para se manter por lá (Mauá), o diretor tem nos dado mostra de empenho em um cinema pensado para educar, por meio de revisionismos controlados ou reafirmações da historiografia oficial. Curiosamente, seus personagens, em alguma medida, sofrem quedas (a morte, a falência), mas, justamente, porque perdem é que se tornam legítimos. Isso diz muito de nossa cultura e nosso olhar para o passado, mas sobretudo de nosso estado de ânimo, invariavelmente mitificando heróis tombados em suas batalhas, mas perseverantes em suas brigas e convicções. Rezende está sempre a elogiar quem reage e enfrenta os limites opressivos de seu tempo.

Mas, a pergunta se impõe: como articular esse desejo de rebeldia com as escolhas formais do diretor? Será possível ser rebelde no cinema sem ser rebelde COM o cinema? Para pegarmos exemplos de dois momentos distintos: é possível imaginar a força política de Os Inconfidentes e Madame Satã, sem a força estética usada por Joaquim Pedro de Andrade e Karim Ainouz? É possível duplicar a contundência desses filmes dentro da proposta de direção de Sergio Rezende? A pergunta não é provocação retórica. Rezende tem dado evidências a quem acompanha o cinema para além do entretenimento e da complementação escolar de ser um realizador cujo estilo está em não procurar ter um estilo personalizado (ou, se personalismo existe, está no, por assim dizer, ar de naftalina da encenação). Certamente, seu método de realização corre atrás da “cena”, dos diálogos explicativos (não conversas), do desenho dos personagens (por isso, os atores, em seus filmes, são muito solicitados).

Nenhum problema nessa opção por um percurso mais vinculado à narrativa clássica (embora razoavelmente quebrada na estrutura). No entanto, dentro dessa proposta, há algum desacerto, ou, digamos, uma falta de rigor com a composição, com movimentação dos atores, com a organização dos acontecimentos dentro do quadro. Não basta atenuar os contrastes das cores para se fazer contemporâneo ou adequado ao padrão de mercado de seu momento. Antes da luz, ou junto com ela, é preciso algum rigor na construção do “quadro”, na escolha de pontos de vistas, na organização das ações e na crença em um cinema como expressão, não só como educação. Logo nos letreiros iniciais de Zuzu Angel, há uma apresentação do filme como um “roteiro realizado por...”. Para bom entendedor, é uma pista incontornável sobre a proposta em questão: um cinema de organização de eventos, de produção de sentidos para a experiência dos personagens e para o momento histórico deles – o início dos anos 70 no Brasil, governado por Médici, que exercia o poder com paus de araras e choques elétricos.

Esse crédito aparentemente banal e insignificante (“roteiro realizado”), talvez sem se dar conta, explica a proposta geral de Zuzu Angel: a de um roteiro ilustrado. O objetivo é a história narrada, não a narração dessa história por imagens, sons, diálogos, enquadramentos, cortes, ritmo. Importa quase unicamente o resumo dramático desse recorte de História. Se pouca gente tem conhecimento sobre a persona Zuzu (como se tinha dos protagonistas biografados em Cazuza, Olga ou Dois Filhos de Francisco), então é necessário explicar quem ela foi. Zuzu Angel está em cena o tempo todo explicando e se auto-explicando, como se precisasse se legitimar pela repetição didática de sua leitura de país e da História, sem se dar espaço para os efeitos dramáticos que poderiam ser gerados pela mise-en-scène (aqui meramente cumpridora do “filme escrito”)

O vínculo com o real é buscado em imagens em preto e branco de manifestações estudantis logo no começo. Já o vínculo com a atualidade resume-se a um padrão contemporâneo de fotografias com poucos contrastes. Contrastante é a relação entre sistema de produção e o espírito defendido pelo filme. Zuzu Angel é um projeto do sistema mainstream de produção brasileira (com rostos já consagrados pela televisão, e outros em ascensão no momento, com associação entre Globo Filmes e a major americana Warner), que, paradoxalmente, sacraliza a atitude política de uma mãe-coragem, fazendo o elogio de sua rebeldia e transgressão, do risco corrido em nome de uma necessidade de ação (convicção). Zuzu, o filme, é do sistema de poder (cinematográfico); mas Zuzu, a personagem, é contra ele (o governo). A resistência real de Zuzu, portanto, sai do campo da política, ou ao menos perde seu vigor, e transfere-se para o do pop. O problema está menos nessa mercantilização das ações rebeldes, e mais na missão “tatibitati” formatadora dessa mitificação do gesto cívico correto (a reação à opressão). Zuzu torna-se símbolo da elite urbana, um modelo a ser seguido: um elogio à burguesia que age quando afetada.

A primeira seqüência, um depoimento em off (uma carta, na verdade), é quase uma autobiografia, de modo a se estabelecer o tema antes de se apresentar os personagens. Zuzu começa o filme sob ameaça de morte e, quando a narrativa caminha para trás, saberemos das razões dessa ameaça à vida. Nessa estratégia típica de thriller, temos a introdução de uma dinâmica de “efeito e causa”, ou seja, primeiro as conseqüências nefastas, depois a razão e o contexto delas. O mesmo movimento é vivido pela heroína, que, primeiro sente os estragos da realidade (a perda do filho, preso por militância), e só depois toma consciência sobre ela, travando sua luta pessoal (de mãe), mas dentro de um jogo de forças mais amplo (o país). Assim, antes da morte em uma simulação de acidente de carro, Zuzu nos é mostrada, em sua fase alienada, como “mulher do sistema”, costureira de esposa de general, ainda com o filho militante à vista (com uma postura de adolescente não menos alienado que a mãe, em seu idealismo de quem tem a solução para o país na ponta da língua). Irá se transformar, na seqüência, em mix de mãe-leoa (atrás do corpo do filho) e de burguesa com espírito de resistência. 

A quebra da linearidade cronológica, se parece acenar com ousadia narrativa, na verdade coloca um obstáculo à pedagogia (o indisfarçável tom a rondar todo o filme). Não porque a narrativa torna-se confusa ou de organização rarefeita, mas por conta de um atentado ao ritmo no encadeamento das situações. Sergio Rezende parece encarnar uma soma de Costa-Gavras com Carlos Coimbra, nessa complexização narrativa de uma proposta de cinema-aula. Um no cravo, outro na ferradura – com vitória, em meu entender, da pedagogia sobre a forma, principalmente em diálogos da protagonista com as instituições (os militares, um padre). Determinadas frases são ditas como se fossem cartazes ditados pelos atores para decorarmos na sala de cinema/escola. Aliás, não sei se por conta desses diálogos, ou por dificuldade de composição de personagem, Patrícia Pillar, em uma variedade de situações, dá impressão de estar dando o texto decoradinho, sem, no entanto vivenciar as palavras ditas. Será impressão apenas?


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta