in loco
Diário de Berlim - 2
por Leonardo Mecchi

O programa do qual participo, o Berlinale Talent Press, reúne jovens críticos de o mundo todo para, durante uma semana e sob os auspícios de um mentor (o meu, no caso, é Derek Malcolm, ex-crítico do jornal britânico The Guardian) produzir textos diários dos mais diversos tipos – críticas de filmes em competição, entrevistas com diretores e produtores presentes no Festival e artigos sobre alguns eventos do Talent Campus.

Ao todo, somos oito selecionados: além de mim, há críticos da Irlanda, Polônia, China, Turquia, Suiça, Singapura e Índia (uma seleção que, por mais que a organização do evento afirme ter se baseado unicamente na qualidade dos textos enviados, me parece politicamente correta demais). O curioso desse tipo de experiência é a troca de idéias com esses jovens críticos. Basicamente todos apontam em seus países problemas semelhantes aos nossos: ausência de espaço para a critica na mídia tradicional, predominância de grandes produções hollywoodianas nas salas de cinema em detrimento da produção local (no que, obviamente, a Índia se diferencia dos demais), necessidade de cópias piratas como única maneira de ter acesso a algumas das grandes obras produzidas atualmente (Hou Hsiao-hsien, Apichatpong Weerasethakul e Jia Zhang-ke foram alguns dos nomes citados nessa questão), etc. Aparentemente, os problemas que enfrentamos estão longe de configurar uma exceção – com o Brasil ainda levando a vantagem de, segundo os relatos de meus colegas, ser o país onde a internet mais de desenvolveu como espaço alternativo tanto para a circulação de obras como para a reflexão critica, o que não deixa de ser uma grata surpresa.

Enquanto isso, continuo acompanhando alguns filmes, dos quais vários provavelmente só serão disponibilizados aos que lêem este relato justamente através desses meios "não-oficiais".

***

Substitute, de Fred Poulet e Vikash Dhorasoo (Franca, 2006) – Forum

Em um primeiro momento, Substitute pode parecer uma espécie de negativo de Zidane, um retrato do seculo XXI, filme exibido no ultimo Festival de Cannes e comentado aqui por Eduardo Valente. Onde lá havia a celebração de um astro maior, um ídolo nacional no auge de sua carreira, aqui temos o retrato de um reserva da Seleção Francesa, Vikash Dhorasoo, que substitui Zidane sob vaias da torcida em um dos jogos das eliminatórias da Copa do Mundo e que, durante o evento máximo do futebol mundial, jogou apenas 16 minutos, assistindo a praticamente tudo do banco de reservas. No que tange seu dispositivo, entretanto, o filme se aproxima de outra obra, muito menos provável: O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento.

Isso porque tudo se inicia quando o diretor Fred Poulet entrega a Dhorasoo, semanas antes do início da Copa do Mundo, uma câmera Super-8 e uma única recomendação: filmar o que quiser, quando quiser. É sobre essas imagens "de dentro", dos bastidores (assim como as imagens geradas pelos presidiários do filme de Sacramento), que aparentemente se constrói o filme. Digo "aparentemente" porque, na realidade, as primeiras imagens captadas por Dhorasoo já colocam em xeque o discurso sobre o qual se estrutura o filme: o jogador francês mira sua câmera para seu entrevistador, e vemos Poulet, também ele, filmando Dhorasoo com uma Super-8. Coloca-se dessa forma, desde o início, a questão da autoria daquelas imagens que vemos. Como ambos trabalham no mesmo registro, nunca sabemos se as imagens que estão diante de nós durante a projeção foram captadas por Poulet, Dhorasoo ou mesmo por uma terceira pessoa (por vezes temos imagens de Dhorasoo treinando e, como Poulet não tinha acesso à concentração da equipe francesa, fica no ar quem estaria realizando aquele registro).

Ao invés de construir um diálogo entre esses diferentes olhares disponíveis, Poulet prefere camuflar a origem daquelas imagens, ocultando sua autoria. Diferentemente da filmagem dos presidiários do filme de Sacramento, as imagens de Dhorasoo pouco trazem de interessante sobre aquele ambiente, frustrando dessa forma aqueles que buscavam nesse registro um olhar privilegiado sobre os bastidores deste que é um dos eventos mais difundidos do mundo. Temos, no lugar disso, infindáveis sequências de quartos de hotel, corredores, viagens de ônibus e tantos outros momentos onde nada parece ocorrer. Esse registro, entretanto, capta fidedignamente a realidade vivida pelo jogador francês durante esse período: preterido no que deveria ser o momento máximo de sua carreira (em diversos momentos o jogador fala em se sentir traído pelo treinador), os dias de Dhorasoo parecem arrastar-se num sem fim de tempos mortos. Sem a expectativa de jogar ("Sou um jogador, nao um espectador ou um torcedor", nos diz em determinado momento), Dhorasoo parece apenas aguardar que aquele suplício chegue ao fim, não importando se com a vitória ou a derrota da Seleção Francesa – sobre quem já se refere como "eles" e não mais "nós". Poulet, entretanto, parece não notar esse significado próprio daquelas imagens e tenta criar uma outra narrativa, não apenas independente, mas imposta àquelas imagens, utilizando as conversas telefônicas que tem com o jogador como fio condutor de sua historia.

Temos assim, na realidade, dois filmes: o das imagens, que registram a Copa do Mundo pelo prisma de um jogador deixado de lado no momento que deveria ser o da consagração de sua carreira, um mero substituto que na realidade será pouco aproveitado, e o do áudio, que busca trazer aa tona o turbilhão de emoções e mágoas por trás do sorriso posado de Dhorasoo para os jornalistas. O que acaba prejudicando o radicalismo de sua proposta é justamente a incapacidade de seu diretor em assumi-la por inteiro, optando ao invés disso por constantes e excessivas intervenções ao longo do filme. Se houvesse se atido à proposta apresentada inicialmente, Substitute poderia ser um filme mais tedioso, mas, paradoxalmente, também mais interessante.

***

Ad Lib Night, de Lee Yoon-ki (Coreia do Sul, 2006) - Forum

Não assisti aos filmes anteriores de Lee Yoon-ki (This Charming Girl e Love Talk), mas Ad Lib Night é uma obra fascinante. Lembra em alguns momentos o cinema de Aki Kaurismaki, pelo seu retrato de uma letargia causada pela solidão contemporânea, mas com um vitalidade e frescor que já não encontro nos últimos filmes do diretor finlandês. A história parte de um princípio bastante interessante: uma garota é abordada na rua por dois rapazes. Eles pensam tratar-se de uma amiga de infância, a quem estão procurando para atender ao ultimo desejo de seu pai moribundo. Como não conseguem encontrá-la, propõem aa garota que os acompanhe e se faça passar por ela, já que são muito parecidas. Surpreendentemente ela aceita, e o filme todo se passa nessa noite em que ela viaja até uma cidade do interior para se passar pela filha de um homem à beira da morte.

Mesmo sem grandes acontecimentos, essa única noite será agente de transformações profundas, não apenas para a família daquele homem como também para a garota (cuja verdadeira identidade e nome só são revelados no final do filme). O processo de se passar por outra pessoa (simbolizado por um simples par de meias), acaba tirando-a do estado de letargia em que se encontrava, proporcionando a ela uma compreensão diferente, não apenas daquela situação que está vivendo, mas de sua vida como um todo – numa espécie de silenciosa epifania, onde mesmo o choro redentor é contido e singelo. Com uma direção precisa e contemplativa e um excelente trabalho de som, Lee Yoon-ki consegue traçar um retrato extremamente apurado das relações humanas e familiares, do medo da solidão e da perda.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta