Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade

Perdas e ganhos

Há inúmeras diferenças entre este Avenida Brasília Formosa, e Um Lugar ao Sol – filme de Gabriel Mascaro sobre o qual também escrevi. Em primeiro lugar, há uma mudança clara de estratégia de aproximação do universo filmado: enquanto Um Lugar ao Sol era um documentário muito fortemente calcado em entrevistas, Avenida Brasília Formosa talvez só possa ser pensado como um documentário por estar lá a logomarca do projeto do DocTV nas cartelas de abertura. Muito como Gustavo Spolidoro em Morro do Céu, Gabriel Mascaro usa uma estrutura em tableaux – normalmente frontais, sempre muito bem compostos e expressivamente fotografados – que permite incorporar o não-repetível do momento documental a uma estrutura narrativa que poderia, tranquilamente, ter sido toda roteirizada de antemão. É como se o “fato” documental (induzido ou não pelo diretor) servisse como matéria-prima para uma montagem narrativa, que organiza o material como um multiplot de dramaturgia bastante clara.

Mas há, também, uma diferença de atitude em relação ao longa anterior que tem desdobramentos estéticos. Um Lugar ao Sol primava pelo embate, pelo enfrentamento direto – desigual, mas ainda assim direto – entre o diretor e o que estava diante da câmera. Essa predisposição enfrentadora, embora de uso e resultados bastante problemáticos, era também o que fazia de Um Lugar ao Sol um filme bastante diferente da massificação de indiferença dos dias de hoje.  Com todos os seus problemas (alguns deles bastante graves), Um Lugar ao Sol era um filme de rara clareza de posições, que entendia o plano cinematográfico como um campo de batalhas – mesmo que a consequência disso fosse um tiro no próprio pé.  Não temos clareza semelhante em Avenida Brasília Formosa. Muito pelo contrário, assim como não sabemos ao certo se vemos um filme de ficção ou um documentário, é difícil determinar sobre o que de fato é o filme de Mascaro.

Há pistas aqui e acolá. Um dos protagonistas é um documentarista local, que conecta outras duas personagens do filme e cria uma falsa sensação de espelhamento entre a câmera que filma e a câmera filmada – falsa, pois a exclusão do quarto personagem (o pescador) dessa teia de relações inviabiliza que o documentarista seja o elo central entre os quatro personagens principais. Há uma relação clara com imagens – seja pela câmera do “filmador” profissional, pelo videocassete, pelo videogame, pelo Big Brother, ou pela janela de onde um casal assiste a vida da rua – mas ela não parece suficientemente trabalhada para se transformar em um núcleo autônomo. E há, por fim, esse espaço-título e tudo que ele implica.

Seguindo esse raciocínio, Avenida Brasília Formosa talvez viesse se alinhar a um grupo de filmes pernambucanos recentes que declaram seu repúdio à verticalização da orla do Recife (Recife Frio, Menino-Aranha e o próprio Um Lugar ao Sol), algo patente nas imagens da desocupação das palafitas originais do Brasília Teimosa, hoje substituídas por duas enormes torres que saltam na ponta da praia. Ainda assim, o filme (como seus primos próximos) não tem a clareza de apontar as consequências reais de um projeto arquitetônico/artístico equivocado, como já fizeram Antonioni (A Aventura, A Noite, o respiro em Gaudí de Profissão: Repórter) e Tsai Ming-liang (as lembranças que se vão com a passarela em A Passarela se Foi). Há um diagnóstico acertado do problema, mas uma clara incerteza de o que se deve fazer para melhor demonstrá-lo.

O que seria, então, Avenida Brasília Formosa? Com a frustração sistemática da construção mais definida de sentidos, é preciso se ater ao que é inalienável: um filme de acompanhamento de um grupo de personagens (quatro protagonistas) em um mesmo espaço (o bairro Brasília Teimosa), durante um determinado (mesmo que não explicitamente) período de tempo. Nesse sentido, chegamos em terreno próximo ao de um certo cinema de fluxo, de matriz principalmente asiática, que privilegia uma dramaturgia de acúmulo de momentos a uma construção de trajetória mais clara. Avenida Brasília Formosa escolhe quatro personagens sem estabelecer ou forçar conexões definitivas entre eles, para então registrar e organizar de forma narrativa seus espasmos de pulsão individuais. Mais do que um arco dramático, temos de fato uma sucessão de tempos fracos e fortes, nos quais somos dados a ver o universo daquelas quatro pessoas e a maneira como elas respondem a ele.

Mas se há algo que faz filmes que usam essa mesma estratégia – como Além dos Trilhos, de Wang Bing; Plataforma, de Jia Zhang-ke; ou Adeus ao Sul, de Hou Hsiao-hsien – serem realmente obras raras, é justamente a impressão de mudança que percebemos enquanto acompanhamos esses fragmentos de vida. Não há, portanto, uma renúncia à trajetória clássica do “herói”; ela apenas é espelhada para o espaço (Além dos Trilhos), o tempo (o trabalho de luz de Adeus ao Sul), e a História (Plataforma). É justamente esse salto, esse momento onde o prazer de ver se transforma em um entendimento do mundo, que falta a Avenida Brasília Formosa – algo que Morro do Céu encontrava em plenitude na simplicidade de seu boy meets girl. Por mais que suas imagens sejam marcantes – e, sim, há uma dúzia de planos memoráveis – ao final persiste a sensação de estarmos diante de um estudo para um filme, e não do filme acabado. Na mudança de postura de Um Lugar ao Sol para este Avenida Brasília Formosa, ganhou-se em rigor e justeza, mas perdeu-se a sensação de desestabilização, o jogo de forças entre câmera e matéria que se equilibrava nos limites do imprevisível. Avenida Brasília Formosa é, com isso, um filme tão mais belo e justo, quanto mais comum.

Setembro de 2010

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